terça-feira, setembro 20, 2005

Resposta a J. Eduardo

J. Eduardo, português, residente na Alemanha há mais de 40 anos, gostava de ter podido votar nas eleições de ontem. Porém, não o pode fazer por não ter adquirido a nacionalidade alemã. Não o fez, para não deixar de se sentir português…
Interessante conflito este: vontade de votar em eleições que são importantes para o futuro da sociedade em que ele está integrado, mas contenção dessa vontade (desse desejo) para não cometer o pecado de ferir um nacionalismo que não admite a plurinacionalidade.
Isto não tem nada de grave nem de censurável.
É a consequência natural de uma filosofia e de uma educação que marcou longamente a sociedade portuguesa.
O 25 de Abril foi em 1974.
A lei da nacionalidade da ditadura esteve em vigor até 1981… Só em 1981 Portugal aderiu a uma concepção da nacionalidade, que, no essencial, aceita a plurinacionalidade e proíbe a perda forçada da nacionalidade de que no cidadão seja sujeito. E essa lei só pode ser implementada em 1982, pois só nessa ano foi publicado o regulamento que permitiu a sua aplicação.
E isto foi assim, apesar de a nova Constituição ser de 1976.
Até 1981, um cidadão português que adquirisse outra nacionalidade perdia a nacionalidade portuguesa. Uma cidadã portuguesa que casasse com um estrangeiro perdia a nacionalidade portuguesa.
Milhares de cidadãos que eram portugueses, por educação, porque serviram o exército português, porque sempre viajaram com passaporte português, perderam a nacionalidade portuguesa porque adquiriram outras nacionalidades com a descolonização.
Só nos anos 80 o país olhou para o lado. E verificou que havia milhares de portugueses que tinham adquirido a nacionalidade de outros Estados por razões de conveniência e para melhor integração nas respectivas sociedades.
O que se via da prática era que eles participavam na vida das sociedades de acolhimento mas continuavam a comportar-se como portugueses, a afirmar a sua condição de portugueses, a animar a vida de instituições portuguesas.
Verificou-se também que nalguns países a naturalização era praticamente uma condição de sobrevivência. Sem a qualidade de nacional do país de acolhimento, o cidadão via as suas condições de vida extremamente limitadas.
A partir dos anos 80, Portugal passou a aceitar o princípio de que a nacionalidade não constitui monopólio de um estado.
Na velha concepção (nacionalista) ser nacional de determinado Estado implicava uma vinculação exclusiva a tal Estado.
A nova concepção (de plurinacionalidade) aceita que o mesmo individuo possa ter uma relação jurídica com diversos estados.
A Convenção Europeia sobre Nacionalidade qualifica a nacionalidade como o vínculo jurídico entre um indivíduo e um Estado, «não indicando, contudo, a origem étnica desse indivíduo». O conceito de «pluralidade de nacionalidades», nos termos da mesma Convenção, designa a posse simultânea, por um mesmo indivíduo, de duas ou mais nacionalidades.
A Convenção contém alguns princípios inovadores, por relação ao quadros dos nacionalismos que marcaram os três primeiros quartéis do século passado. Cito apenas alguns:
1. Cada Estado determinará quem são os seus nacionais nos termos do seu direito interno.
2. Tal direito será aceite por outros Estados na medida em que seja consistente com as convenções internacionais aplicáveis, com o direito internacional consuetudinário e com os princípios legais geralmente reconhecidos no tocante à nacionalidade.
3. As normas de cada Estado sobre a nacionalidade basear-se-ão nos seguintes princípios:
a) Todos os indivíduos têm direito a uma nacionalidade;
b) A apatridia deverá ser evitada;
c) Nenhum indivíduo será arbitrariamente privado da sua nacionalidade;
d) Nem o casamento ou a dissolução de um casamento entre um nacional de um Estado Parte e um estrangeiro, nem a alteração de nacionalidade por um dos cônjuges durante o casamento, afectará automaticamente a nacionalidade do outro cônjuge.
4. As normas de um Estado Parte sobre nacionalidade não conterão distinções nem incluirão qualquer prática que conduza à discriminação em razão de sexo, religião, raça, cor ou origem nacional ou étnica.
5. Cada Estado Parte regular-se-á pelo princípio da não discriminação entre os seus nacionais, independentemente da nacionalidade ter sido adquirida por nascimento ou em qualquer momento subsequente.
O mais importante desta Convenção – que define a essência dos princípios gerais de uma nova concepção de nacionalidade - está num jogo de duas liberdades:
- a liberdade de cada Estado definir os quadros de acesso à sua nacionalidade;
- a liberdade de cada cidadão poder estabelecer relações de cidadania relativamente a um outro estado sem perder a nacionalidade de que já era titular.
A nacionalidade é um vínculo entre um indivíduo e um Estado, estabelecido de acordo com o direito interno desse Estado, mas que não reporta a origem étnica do indivíduo, ficando o Estado proibido de discriminar os seus cidadãos em função da origem étnica.
Nesta moderna concepção de nacionalidade, os estados têm, naturalmente, o direito de definir os quadros em que os cidadãos podem aceder à sua nacionalidade; mas não podem discriminar os cidadãos em razão da plurinacionalidade nem forçar a perda de nacionalidade em razão da aquisição de nova nacionalidade, da origem étnica ou da mudança do estado civil.
Um dos vectores mais interessantes da Convenção é o liberdade que qualquer cidadão tem de escolher uma nova nacionalidade sem perder a nacionalidade que tinha.
J. Eduardo tinha todo o direito de adquirir a nacionalidade alemã (que nada tem a ver com a sua origem étnica) mantendo a nacionalidade portuguesa.
Ele está ligado a Portugal pelo sangue, pela saudade, pelo amor às origens e por isso a Convenção (de que Portugal é aderente) lhe garante que não perderá a nacionalidade portuguesa se adquirir a nacionalidade alemã. E, afinal, trabalhando na Alemanha há mais de quarenta anos, é justo que ele possa adquirir a nacionalidade alemã e influenciar a vida alemã, sem prejuízo de continuar a ser português.
O que não é justo – o que até é inadmissível à luz dos princípios da Convenção – é que o Estado português lhe reduza os direitos de cidadania na hipótese de ele adquirir a nacionalidade alemã.
Esse esvaziamento perverte completamente o sentido da Convenção.
É nesse sentido que a Lei Orgânica nº 5/2005, de 8 de Setembro é perversa.
Ela anula a essência de princípios estruturantes da Convenção Europeia sobre Nacionalidade.