quarta-feira, novembro 08, 2006

EDMUNDO PEDRO - MEMÓRIAS

«Naquele ano de 1933, tudo parecia apoiar a ideia de que a marcha para o comunismo – representada pela conclusão, antes do tempo previsto, do 1º. Plano Quinquenal – era imparável. Esse plano lançara as bases da indústria pesada soviética. As gigantescas empresas industriais implantados nos Urais e as colossais barragens hidroeléctricas (de que a do Dinieper, considerada, na altura, a maior do mundo, se tornara um símbolo), cuja construção coincidiu com a fase em que o mundo capitalista se afundava na maior crise da sua história, pareciam credenciar a ideia de que nada poderia deter a marcha triunfante da União Soviética. .
O mundo capitalista, aterrado perante a força de atracção que esse aparente triunfo representava, reforçara, em torno da URSS, um eficaz do "cordão sanitário" destinado a impedir a propagação da influência soviética. Desde os países bálticos, no norte, até à Roménia, no sul, estendia-se um vasto sistema de contenção constituído por países dominados por regimes de cariz totalitário onde as liberdades públicas tinham sido fortemente restringidas ou pura e simplesmente anuladas. A única excepção era a Checoslováquia. Nesse país existia uma economia florescente que proporcionava aos trabalhadores um nível de vida muito acima do que reinava nos restantes países que integravam aquele "cordão". Esse nível punha-os ao abrigo das tentações revolucionárias inspiradas no exemplo soviético.
Os rápidos progressos do movimento comunista internacional (que tinha suplantado no nosso País, em pouco tempo, a influência predominante que os anarco-sindicalistas haviam exercido no movimento operário) exprimiam uma confiança cada vez maior naquele projecto. Um número crescente de intelectuais de grande prestígio deixava-se seduzir pelas aparências, habilmente montadas, da propaganda comunista. Esta punha em evidência uma realidade dificilmente contestável: perante uma economia capitalista atolada numa crise da qual parecia não poder sair (que o "crack" da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, generalizara a todo o mundo), acontecimento que levara por toda a parte ao encerramento de empresas e à emergência de milhões de desempregados; perante uma economia que não sabia o que fazer à sua colossal produção de bens de consumo (nomeadamente alimentares, que apodreciam ou eram atirados para as caldeiras das locomotivas, tais como o trigo e o café, por não terem colocação rentável no mercado); no quadro de uma economia que sabia produzir, mas se mostrava incapaz de distribuir racionalmente o que produzia, milhões de pessoas morriam de fome. Em face dessa economia contraditória e em ruínas, parecia estar a erguer-se, pela primeira vez na história da humanidade, uma economia baseada na racionalidade científica e na justiça. Essa nova economia anunciava que elegera o Homem, e não o lucro, como fim supremo a atingir. A única solução que aparentemente restava ao sistema capitalista agonizante era, pois, o recurso à repressão contra todos aqueles que se dispunham a lutar contra as suas gritantes contradições e injustiças.
A repressão que, como uma imensa vaga, ia submetendo os povos da Europa ao jugo totalitário começara a ser liderada pela Alemanha nazi e pela Itália fascista – repressão que se propunha, antes de tudo, fazer face ao chamado “perigo comunista”. Aliás, em todos os países capitalistas, mesmo naqueles onde subsistiam regimes democráticos, era notório o receio provocado pela força de atracção de um projecto revolucionário que parecia contrapor à decrépita economia de mercado, afundada na crise, a aparentemente vigorosa economia planificada soviética, isenta de crises e posta ao serviço, pela primeira vez na atribulada história da humanidade, do bem-estar colectivo...
Os livros em que bebi as certezas que o mundo à minha volta parecia irrefutavelmente confirmar foram aqueles em que basicamente assentava o primeiro nível de formação dos militantes, a saber: o "Manifesto Comunista", de Marx e Engels, o "Estado e a Revolução", "Imperialismo, Última Fase do Capitalismo", "Que Fazer", de Lenine, e "Os Fundamentos do Leninismo", de Estaline. O "Materialismo Histórico", de Bukarine, ajudou-me a compreender, com o precioso apoio do Pavel, as leis dialécticas do processo social, baseado na luta de classes. Essas leis implicariam a inevitabilidade do acesso da classe operária ao poder...
Até aos quinze anos devorei os principais livros que fundamentavam a teoria e a prática marxista-leninista. Li também alguns romances e novelas da literatura soviética, inspirada no chamado “realismo socialista”. Referiam-se não só ao período da guerra civil, destacando o papel dos heróicos guerrilheiros e o empenhamento dos trabalhadores na luta que conduzira à consolidação do novo poder, como à fase posterior em que foram lançadas as bases da reconstrução económica. Os heróis do trabalho, que nos eram apresentados como indivíduos cheios de entusiasmo e devoção, como apoiantes incondicionais do novo regime, ajudavam a completar o quadro social altamente motivador em que decorreria a edificação da nova sociedade.
A biblioteca do Arsenal era, aliás, excelente. E a escolha dos livros fora feita sob a influência, entre outros, de Bento Gonçalves e de Francisco Paula de Oliveira. Estava politicamente bem orientada.... Visitava-a sempre que podia.
Essas leituras, comentadas e discutidas com verdadeiros mestres da cultura marxista, firmaram-me na convicção de que pela primeira vez na História a classe operária, “com o apoio dos camponeses pobres e dos intelectuais que tinham feito uma nova opção de classe”, tinha conquistado o poder na Rússia. Não tinha dúvidas de que se estabelecera ali, sob a direcção do “partido da classe operária” (o Partido Bolchevique) uma ditadura de novo tipo, uma ditadura, ao contrário de todas as que a tinham precedido, da “maioria explorada sobre a minoria exploradora”, uma “ditadura de classe”, como fora definida por Lenine. Não tinha dúvidas de que a “pátria do socialismo” - cuja força, com o apoio dos seus inesgotáveis recursos materiais e com a solidariedade dos explorados de todo o mundo, cresceria continuamente - se teria transformado numa garantia de que o projecto comunista estava destinado a estender-se a todo o planeta... Essa convicção levava-me a considerar que um dos principais deveres dos comunistas de todo o mundo consistia na defesa daquela experiência exemplar. A União Soviética transformara-se na “fortaleza do socialismo”. Todos nós, comunistas, tínhamos a obrigação de lutar contra o “cerco capitalista” de que o país dos sovietes se sentiria alvo. »