quinta-feira, outubro 21, 2010

Extinguiu-se a raça dos buiças

A sorte da nossa classe política reside, essencialmente, no facto de se ter extinto a raça dos buiças.


Manuel Buíça, filho do reverendo Abílio da Silva Buíça, pároco de Vinhais e de Maria Barroso cumpriu, seguramente, um projeto de deus, ao assassinar D. Carlos e o príncipe real D. Luis Filipe, em 1 de Fevereiro de 1908.

Tinha duas crianças, Elvira e Manuel, que, à data do regicídio, eram menores de sete anos e quatro meses, respetivamente.

Manuel Buiça foi 2º sargento no regimento de cavalaria de Bragança e ganhou mérito por se revelar um excelente mestre de armas, que ganhou em pouco tempo a medalha de atirador de 1ª classe, atribuída sem favor, como se viu com a demonstração a vivos e a mortos, acertando em D. Carlos e D. Luis Filipe a 8 metros de distância.

Demitido do exército, transformou-se em professor do ensino livre, lecionando no Colégio Nacional, lições particulares de música e de francês.

Na madrugada daquele dia 1 de Fevereiro, Manuel Buíça reuniu-se com Alfredo Costa e outros companheiros, todos da Carbonária, na Quinta do Xexé. Nesse dia, almoçou com Alfredo Costa e outros três carbonários no Café Gelo, no Rossio.

Depois do almoço, foi buscar a Winchester modelo 1907, com o n.º de série 2137, importada da Alemanha por Heitor Ferreira, e colocou-se atrás de uma árvore, frente ao Ministério do Reino, no Terreiro do Paço, enquanto Alfredo Costa, , Fabrício de Lemos e Ximenes se colocavam discretamente debaixo das arcadas, junto ao Martinho.

Ás 5 e 20 da tarde, Manuel Buiça avançou para o meio do Terreiro do Paço e a a oito ou dez metros de distância do landau real, pôs a carabina na cara e um joelho no chão, abrindo fogo sobre o rei, que atingiu no pescoço, partindo-lhe a coluna vertebral.

O segundo tiro foi para o príncipe, mas falhou. Deu mais dois e ao quarto atingiu D. Luis em cheio, com um tiro que lhe entrou na face esquerda e lhe saiu pela nuca.

Buiça morreu pouco depois às mãos do tenente Francisco Figueira, mas tudo indica que morreu feliz.

No dia 28 de Janeiro de 2008, Manuel Buiça escreveu este discreto testamento:

«Manuel dos Reis da Silva Buiça, viúvo, filho de Augusto da Silva Buiça e de Maria Barroso, residente em Vinhaes, concelho de Vinhaes, districto de Bragança. Sou natural de Bouçoais, concelho de Valpassos, districto de Vila Real (Traz-os-Montes), fui casado com D. Herminia Augusta da Silva Buíça, filha do major de cavalaria (reformado) e de D.Maria de Jesus Costa. O major chama-se João Augusto da Costa, viuvo. Ficaram-me de minha mulher dois filhos, a saber: Elvira, que nasceu a 19 de dezembro de 1900, na rua de Santa Marta, número… rez do chão e que não está ainda baptisada nem registada civilmente e Manuel que nasceu a 12 de setembro de 1907 nas Escadinhas da Mouraria, número quatro, quarto andar, esquerdo e foi registado na administração do primeiro bairro de Lisboa, no dia onze de outubro do anno acima referido. Foram testemunhas do acto Albano José Correia, casado, empregado no comércio e Aquilino Ribeiro, solteiro, publicista. Ambos os meus filhos vivem commigo e com a avó materna nas Escadinhas da Mouraria, 4, 4o andar, esquerdo. Minha família vive em Vinhaes para onde se deve participar a minha morte ou o meu desapparecimento, caso se dêem. Meus filhos ficam pobrissimos; não tenho nada que lhes legar senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que soffrem. Peço que os eduquem nos princípios da liberdade, egualdade e fraternidade que eu commungo e por causa dos quaes ficarão, porventura, em breve, orphãos. Lisboa, 28 de janeiro de 1908. Manuel dos Reis da Silva Buiça. Reconhece a minha assignatura o tabelião Motta, rua do Crucifixo, Lisboa".

Ele sabia que ia morrer. Claramente que o sabia.

Uma das principais motivações do ódio que o moveu – e quem diz que o ódio não é um sentimento nobre – foi a dos adiantamentos à casa real, de que Afonso Costa já tinha falado no célebre discurso de 20 de Novembro de 1906:

«As consequências desses costumes, que o Sr. Ministro não quis denunciar-nos como devia, são no entanto bem frisantes e dolorosas, e definem-se em duas palavras: uma dívida pública de perto de 800.000.000$000 réis; uma dívida flutuante que vai até 72.000.000$000 réis; impostos que têm sempre aumentado, até quase quintuplicarem, de 1852 para cá; e, por outro lado, o País sem instrução, nem exército, nem defesa das costas, e fronteiras, nem marinha, nem, auxílio aos operários, nem nada do que se pede e precisa, porque nem sequer temos estradas, já que as existentes, que nos custaram dezenas de milhares de contos de réis, destruiu-as a triste iniciativa e casmurrice do Sr. João Franco num dos seus Ministérios anteriores, não consentindo nas reparações necessárias, e inutilizando assim um importante capital nacional que, pelo contrário, era mister valorizar e aumentar.»

Por muito menos crimes do que os cometidos por D. Carlos I, rolou no cadafalso, em Franca, a cabeça de Luís XVI! – concluiu Afonso Costa, antes de lhe ter sido retirada a palavra.

Peço ordem. Ou o Sr. Dr. Afonso Costa retira as últimas expressões empregadas, ou terá de lhe ser aplicado o Regimento.

E Afonso Costa respondeu: Por muito menos rolou no cadafalso a cabeça de, Luís XVI.

Em 2001, discursava assim o ministro das Finanças, Oliveira Martins:

«Deixem-me que comece por esclarecer um equívoco que parece persistir. E esse equívoco tem a ver com o facto de se esquecer, por vezes, que estamos a cumprir novos objetivos quanto ao défice orçamental. Com efeito, devemos definir com cuidado os termos exatos que caracterizam o momento presente. Todos temos consciência de que estamos no ano de 2001 a realizar algo que há menos de uma década pareceria impossível - e que muitos têm sistematicamente esquecido. Ao propormo-nos atingir um défice orçamental de 1,1% do PIB no Setor Público Administrativo vamos alcançar o valor mais baixo do défice público dos últimos 27 anos. Trata-se de um esforço inédito que obriga a redobrar o rigor e a exigência - cumprindo-se o Programa de Estabilidade e Crescimento, numa lógica consistente e de médio prazo. Nunca este valor foi atingido em democracia e na nossa história financeira apenas foi alcançado nos primeiros exercícios da Primeira República com o Prof. Afonso Costa e depois de 1928 durante a ditadura financeira do Prof. Oliveira Salazar. Em nenhum dos casos anteriores havia economia aberta. Em nenhum dos exemplos anteriores havia um parlamento plural, ainda por cima sem maioria absoluta do Governo, em nenhum dos exemplos havia poder local descentralizado e democrático, finanças regionais, políticas sociais ativas e um sistema de segurança social financeiramente equilibrado. Eis donde temos de partir para que não se façam retratos catastróficos ou idílicos de um país imaginário ou de circunstâncias que não existem.

Estamos, assim, numa conjuntura inédita - que não se pode ou deve comparar com o ciclo imediatamente anterior, no qual não existiam os constrangimentos orçamentais ditados por objetivos que visam garantir um maior equilíbrio entre a iniciativa pública e a iniciativa privada, e apontam para que a despesa pública deva crescer a um ritmo inferior ao do crescimento do produto interno.»

Parecia o fim do regabofe mas as palavras foram levadas pelo vento. O tempo voltou a cheirar a regicídio, mas felizmente para os que estão no lugar do rei que não já não há buíças. Comparando os valores, seriam precisos 300, 400 ou 500, porque em vez de uma família real há milhares de famílias com os mesmos vícios que sugam o sangue do país, no mesmo estilo em que o faziam os príncipes.

Mas, felizmente para eles, também não há afonsos costas, como se numa reciclagem da história, monárquicos e republicanos se tivessem unido sob o mesmo desígnio de esconder ao país a verdadeira realidade da situação financeira.

Não há um partido, não há um político que diga ao país coisas tão claras e inequívocas como esta coisa simples que consiste em o orçamento do estado se destinar apenas a pedir novos empréstimos, que nem sequer são de dinheiro, são apenas de lançamentos contabilísticos, porque Portugal está literalmente falido.

Ninguém tem a coragem de dizer quanto se deve e muito menos como se vai pagar. Nem de confessar a evidência que consiste em reconhecer que o novo orçamento não serve para nada para além de aumentar a dívida de forma estrondosa, como quem aceita uma letra, sem saber como a vai pagar.

Se isto fosse há 100 anos talvez houvesse uma multidão de buiças para resolver o problema. Mas os tempos mudaram…