quarta-feira, setembro 16, 2015

O último dia do resto da minha vida...

O relógio tocou às 8 da manhã, com o Sérgio Godinho a matraquear que hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.
Tomei um duche ligeiro, fiz a barba e pus um desodorizante diferente, como se me apetecesse marcar a diferença.
Cheguei um quarto de hora antes da que tinha sido marcada.
A principio é simples, anda-se sozinho, passa-se nas ruas bem devagarinho
está-se bem no silêncio e no burburinho. Pouco a pouco o passo
faz-se vagabundo...
A funcionária, aliás muito simpática anunciou que era mesmo hoje, mais de dois anos depois do requerimento.
- São 50,00 euros, pode ser?
Voltou-me à memória a música do Sérgio e o mesmo verso que diz que hoje é o primeiro dia do resto da tua vida. Paguei os 50,00 euros e protestei.
Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
Olha-se para dentro e já pouco sobeja
Pede-se o descanso, por curto que seja (...)
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.
A doutora chamou-me e havia mais uma doutora e um doutor.
Tem um terço do pulmão... Fumou muito, como é que foi.
Foi o Dr. Correia de Matos, um médico excelente. Foi há mais de 10 anos, uma cirurgia de redução de enfizema. Fumava SG Gigante, 4 maços por dia. Mas não tenho nada contra o médico. Excelente... Uso CPAP mas vivo; se tivesse feito o transplante já tinha embarcado.
Temos aqui um cancrozito...
Um cancrozito? Não, o meu cancro é um cancro sério. Amo-o, ciente de que se não o amar ele me mata. Tem alguma coisa contra o meu cancro?
Pois... E temos a hemodiálise...
A hemodiálise é uma coisa que deveria ser nacionalizada, para não ser um negócio mais ou menos escandaloso como é.
Comecei há dois meses e sinto-me um não cidadão ou um cidadão do terceiro mundo.
Há uma companhia alemã que ganha uma fortuna à custa do meu futuro cadáver (parece que são 6.000,00 euros por mês).
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Brinda-se aos amores com o vinho da casa
E vem-nos à memória uma frase batida.
Adorava continuar a ser cidadão da Europa, de Portugal, de qualquer país, ainda que de merda.
Deixei de o ser, porque ninguém pode pagar 6.000,00 euros por mês a uma multinacional, para poder sobreviver.
Claro que não vou voltar aos Estados Unidos nem a mais uma série de países onde os Portugueses como eu não podem entrar.
Vou continuar a trabalhar enquanto puder, porque o trabalho faz parte do meu código genético.
Vou continuar a pagar impostos, como sempre paguei, mesmo que veja toda a gente a fugir, aqui mesmo ao lado.
Mas vou deixar de ser cidadão de corpo inteiro, porque a resposta às minhas debilidades, a que hoje me deram, é a de que sou inválido, sendo a invalidez de mais de 92%.