domingo, outubro 04, 2015

O dia em que perdi a cidadania


Lisboa, 4 de outubro de 2015


Crónica do dia em que me retiraram a  cidadania


Levantei-me, muito bem disposto, às 10 da manhã.
Tomei o pequeno almoço e preparei-me para ir votar,  com um sentido da importância do voto como nunca senti, com exceção de uma única data, a de 25 de abril de 1975.
Durante anos votei, reiteradamente no PS.
Anos houve em que votei em branco, porque o PS se degradou e nunca me revi noutro partido.
Comecei por votar na Pocariça, concelho de Cantanhede.
Depois, mudei a minha inscrição no recenseamento, sucessivamente, para a Amadora e para Lisboa, freguesia de Santa Isabel.
Resido no Brasil desde 20 de maio de 2011, sempre tendo cumprido a obrigação de atualização do cartão de cidadão, ciente de que a inscrição no recenseamento dos residentes no estrangeiro não é obrigatória[1] e de que a residência, inscrita no cartão de cidadão, não é um dado passível de tratamento de dados[2].
Passo no  Brasil pouco mais de metade do ano, passando o resto do tempo em Portugal, para onde canalizo o trabalho que organizo no exterior.
Sou um emigrante forçado pela crise que abalou o meu pais; não sou, ao menos por enquanto, um refugiado.
Como eu, há centenas de milhar de outros portugueses, de todas as profissões, entre os quais milhares de estudantes que frequentam, por mais de seis meses anuais, universidades estrangeiras.
Mesmo que eu passe mais de metade do meu tempo no estrangeiro é em Portugal que se centra a minha atividade.
Organizo trabalho no exterior para pessoas que trabalham em Portugal e é para Portugal que canalizo a totalidade dos meus rendimentos.
O mesmo acontece com todos os que foram obrigados a emigrar, para procurar trabalho no exterior.
Nunca procedi à alteração da minha inscrição no recenseamento eleitoral, comprometendo-me a cumprir os meus deveres cívicos em Lisboa, a cidade com quem tenho uma ligação de mais de 40 anos.
Uma das razões pela qual nunca me inscrevi no cadernos eleitorais da área consular a que corresponde a minha residência é a de que não aceito a discriminação negativa dos emigrados, entre os quais me incluo.
Os emigrantes portugueses são tratados como portugueses de segunda ou mesmo de terceira.
Um voto de Chaves ou de Viseu vale centenas de vezes mais do que um voto de São Paulo ou de Nova Iorque.
Os deputados da emigração são apenas quatro: dois para o círculo da Europa e dois para o circulo de Fora da Europa.
É como se toda a Diáspora não tivesse mais eleitores do que os distritos de Castelo Branco ou da Guarda e como se a Europa e o Resto do Mundo não tivessem mais eleitores que o distrito de Portalegre.
Do mesmo modo que há milhares de pessoas que, desde o 25 de abril, continuam a votar nas suas terras de origem, há milhares de residentes no estrangeiro que mantiveram as suas inscrições em Portugal.
Eu sou um deles: resido no Brasil, onde passo entre 7 e 8 meses por ano, mas sempre mantive a minha inscrição no recenseamento eleitoral em Lisboa.
Nunca me inscrevi no Consulado Geral de Portugal em São Paulo, porque o recenseamento é voluntário para os residentes no estrangeiro, mas parece-me que não perdi o direito de voto, pelo facto de ter passado a ser residente no estrangeiro.
Votei em Lisboa, nas eleições autárquicas de 2013 e nas eleições para o Parlamento Europeu de 2014.
Ora, o que as autoridades de meu País fizerem, à beira destas eleições, foi eliminar o meu nome dos cadernos eleitorais, sem, porém me inscrever na circunscrição em que dizem que eu deveria votar.
Segundo soube hoje, o mesmo terá acontecido com centenas de milhar de outros cidadãos, em idênticas circunstâncias.
No limite, poderia aceitar-se a tese de que, tomando em consideração as alterações introduzidas pela Lei nº 47/2008, de 27 de agosto, as autoridades atualizassem os cadernos eleitorais, eliminando o meu nome em Lisboa e adicionando-o aos cadernos de São Paulo.
Se assim fosse, receberia eu um boletim de voto, para votação por correio, na lista do circulo eleitoral Fora da Europa, o tal voto dos portugueses de segunda ou de terceira.
Mas nem isso: pura e simplesmente eliminaram-me como cidadão e não me “atualizaram” na circunscrição  a que terei passado a pertencer.
Quando hoje compareci no Liceu Pedro Nunes para exercer o direito de voto, disseram-me que o meu número de eleitor “foi riscado” e que não existo como eleitor, nem aqui nem em lado nenhum.
Insisti em que me esclarecessem porquê.
Disseram-me que perdi o direito de voto porque mudei a minha residência para o estrangeiro e que, se quisesse, me inscrevesse na circunscrição da minha residência.
Há centenas de milhar de pessoas  que, como eu, contavam estar inscritas, como sempre estiveram, no recenseamento eleitoral e que deixaram de o estar, porque o recenseamento eleitoral dos residentes no estrangeiro é facultativo e a circunscrição a que ficam afetos os residentes no estrangeiro é a da morada definida no cartão de cidadão.
Como a Lei nº 7/2007, de 5 de fevereiro, obriga os detentores de cartão de cidadão a proceder à mudança de morada, logo que ela se verifique, no prazo de 30 dias, sob pena de coima de 50 a 10 €, perde, objetivamente o direito de voto quem cumprir essa obrigação e não se recensear no consulado da região para onde emigrar.
Isto resulta, tal como está a ser feito, numa verdadeira extinção dos direitos de cidadania de quem emigrar, pois que aos representantes dos emigrantes se não aplica a regra da proporcionalidade, por relação à população, que se aplica no Continente e nas Ilhas.
Hoje foi um dos dias mais tristes da minha vida.





[1] Artº 4º, al. a) da Lei nº 13/99, de 22 de março
[2] Artº 35º, por referencia ao artº 8º,1 al. b) d Lei nº 7/2007, de 5  de fevereiro