Gosto muito da França,
especialmente de Paris, e tenho um apreço especial pelos franceses, entre os
quais conto com grandes amigos.
Estudei jornalismo no CFJ, na Rue
du Louvre e tive a oportunidade de conhecer, em 1974, alguns dos maiores vultos
do jornalismo francês, de que destaco Hubert Beuve-Méry, Jean Daniel e J.J
Servan-Schreiber, pai do David Servan-Schreiber,
que conheci quando ele tinha 13 anos e que, mais tarde, se tornaria o meu guru do cancro.
Paris era, nessa época, a maior
cidade portuguesa, a cidade de toutes les
concièrges.
Quando estive em Paris - com o Mário Bettencourt Resendes, o Joaquim
Vieira, a Maria Elisa, o Pedro Mariano, o Pedro Luis de Castro, o Francisco
Burnay, o Manuel Lamas, o João Vale de Almeida, entre outros – estava no poder
Valery Giscard d’Estaing.
Tive a a oportunidade de acompanhar a cimeira de Rambouillet e as conversações entre Giscard e Leonid
Brejnev, em dezembro de 1974.
Talvez tenha sido nessa época que
se desfizeram boa parte das ideias que eu tinha alimentado, na senda dos
escritos da Jeune Afrique, sobre a posição anticolonialista da França, para as
substituir por outras, desenhando uma França neocolonialista, disposta a fazer
tudo para recuperar influência no exterior, usando para isso os meios que fosse
necessário usar.
Lembro-me de uma conversa com um
assessor de Giscard em que, precisamente, se questionava por que razão podia a
União Soviética fornecer armas a Angola e Moçambique e não podia a França fazer
o mesmo.
Quem não podia fornecer armas às
suas antigas colónias era Portugal, por razões que não consegui descortinar na
juventude dos meus 23 anos.
Acompanho a politica francesa
desde essa época, com uma atenção diária e adotei o francês é a minha segunda língua.
Nunca fui Charlie Hebdo apesar de ter lastimado o que ali aconteceu e de
continuar a apreciar esse vigoroso semanário.
Depois daquela correção de
trajetória, sempre respeitei a vocação
colonialista dos franceses, sem prejuízo de sempre ter criticado os seus
excessos e de, há mais de 30 anos, vir advertindo para as causas da crescente
perda de influência da França em todo o Mundo, em tudo o que essa influência
poderia ser positiva.
Na minha geração toda a gente que
tivesse passado por um liceu falava francês; hoje o francês é uma língua que
ninguém fala, como se a França foi um país decrépito, apesar de ter aumentado,
por relação à década de 70 do século passado a sua presença nos teatros
bélicos.
Nesse tempo, nós os portugueses,
tivemos a noção da História e – em boa
parte por influência francesa, sobretudo da imprensa e dos pensadores do último
quartel do século XX – descolonizamos e negociamos a independência das nossas
colónias em África.
Logo no nosso encalço se viraram
os franceses para a África, encetando experiências neo-coloniais que deixaram
manchas em vários territórios, a maior das quais foi a do escândalo denominado Angolagate.
Tínhamos dois Estados tampões que
contribuíam, de forma equilibrada para os equilíbrios regionais: a Síria e a Líbia.
Já no século XXI franceses
figuram entre os principais responsáveis pela desestabilização desses Estados,
ambos membros das Nações Unidas, tanto por via do apoio a terroristas que neles
atuaram como mercenários, como por via da intervenção das suas forças armadas,
especialmente da força aérea.
É hoje cada vez mais claro que o
ISIS - Islamic State of the Iraq and the Levant – é uma criação de alguns
países ocidentais, envolvendo mercenários de quase todos os países europeus,
que funciona, essencialmente, como um alibi para a sustentação de uma guerra,
com os consequentes lucros para os grandes fabricantes de armamento, entre os
quais estão os franceses.
Conheciam-se árabes de vária
natureza na Al-Qaeda, apesar de ser conhecido e de ser controverso que Ossama Bin-Laden
foi um agente americano e que a sua família privava com os Bush na fazenda do
Texas.
Um dia antes do 11 de setembro,
George W. Bush participou numa assembleia da Carlyle, de que foi administrador
Frank Carlucci, no Ritz Carlton Hotel, em Washington, na qual esteve também
presente o irmão de Osama Bin Laden, Shafiq Bin Laden.
As caras da Al-Qaeda foram,
durante anos, caras amigas dos Estados Unidos e, portanto, do Ocidente.
Do mesmo modo, no Iraque e no
Irão sempre pautaram homens de mão dos países ocidentais.
Saddam Hussein era um homem da
confiança dos Estados Unidos.
Ronald Reagan fez dele uma
aliado, estabelecendo com o Iraque uma parceria, comemorada com grandes
negócios de armamento, nomeadamente armas químicas usadas contra os iranianos e
os curdos.
Saddam foi uma espécie de
mandatário americano na luta contra os xiitas iraniados.
Nos anos 90, os Estados Unidos
assumiam que o regime de Saddam Hussein era fundamental para a defesas dos seus
interesses na região.
O Iraque chegou a ter um exército
com mais de um milhão de homens, equipados com armamento comprado a diversos
países ocidentais, entre os quais os Estados Unidos e a própria França, que também
fornecia os aiatolas do Irão.
É bom lembrar que Khomeini foi “criado”
em França e chegou a Teerão (1979) num avião da Air France.
Quando a Saddam Hussein, o homem
dos americanos nos vales do Tigre e do Eufrates, foi “julgado” e condenado à morte por um tribunal que não
merce nenhuma credibilidade, por crimes de que são co-autores os seus mandantes
americanos, especialmente Ronald Reagan e George Bush, os verdadeiros
responsáveis pelas atrocidades cometidas contra os curdos e os iranianos.
O Iraque praticamente desapareceu
como Estado.
Os soviéticos ajudaram a destruir
o Afeganistão numa longa guerra que durou até 1989, e no quadro da qual nasceu,
sob influência americana, a Al-Qaeda,
organização que se incumbiu da gestão do apoio ocidental aos mujahidins,
treinados pelo ocidente e pela China.
Depois foi o poder dos talibãs e
a guerra civil, transformando-se o Afeganistão num estado pária.
Em 2012, a Líbia tinha o segundo
melhor índices de desenvolvimento humano da África. Tinha também as décimas
maiores reservas de petróleo do mundo.
Em 2011, os países ocidentais
ajudaram, com armas e dinheiro, os movimentos terroristas que se rebelaram contra Muammar Khadafi e a NATO bombardeou os principais
centros administrativos, tendo entregue o poder (se é que se
pode chamar poder) aos insurgentes.
A Líbia é hoje um
Estado pária...
A Síria foi uma colónia
francesa até 1940, ano em que foi tomada pelos nazis, tendo declarado a
independência em 1946.
A vida desde país tem
sido atribuladíssima desde a independência.
Em 2011, com o apoio dos países ocidentais,
desertores do exército fundamentara, o Exército Sírio Livre, que passou a
combater as forças armadas sírias e que se transformou, ele próprio numa
organização terrorista, suportada por mercenários de todos os matizes, na
maioria sunitas, quando é certo que o poder sírio assenta em figura alauitas.
A partir de 2013, com a Síria e o Iraque em situação
caótica, começa a afirmar-se, como se viesse do zero, o ISIS (ouad-Dawlah al-Islāmīyah) que,
de um momento para o outro, passou a dominar uma enorme área do território da
Síria e do Iraque.
Em setembro de 2014, os Estados Unidos declararam
assumir a liderança de uma coligação constituída, segundo então se disse por 48
países, para combater não o ISIS mas o Estado Islâmico, conferindo por essa via
a dignidade de Estado àquele grupo terrorista.
A imprensa passou a
referir-se ao 'jihadistas' do EI (Estado Islâmico) em vez do ainda acrónimo Estado Islâmico do Iraque e do
Levante (ISIS ou ISIL.
Em 2014, o Irão declarou
que iria prestar apoio militar aos curdos iraquianos contra os 'jihadistas', enquanto
que a Síria de Bashar al-Assad foi liminarmente afastada da coligação, apesar
de boa parte das ações se desenvolverem no seu território.
A partir de 8 de agosto
de 2014, os Estados Unidos passaram a bombardear os territórios do Iraque e da
Síria alegadamente ocupados pelos jihadistas do EI, provocando uma migração
massiva das populações.
Em setembro de 2014,
François Hollande anunciou o fornecimento de armas aos 'peshmergas' curdos,
sublinhando, porém "a importância de uma resposta política, humanitária e,
se necessário, militar no respeito pelo direito internacional".
Também em setembro de
2014, o Reino Unido anunciou o fornecimento de metralhadoras pesadas e munições
às forças curdas, reforçando os seus anteriores envios de material de guerra.
A Austrália também
assegurou o fornecimento de material militar, armas, munições e a ajuda da sua Força Aérea.
A Alemanha anunciou o envio para os combatentes curdos de 30 sistemas de
mísseis antitanque, 16.000 espingardas de assalto e 8.000 pistolas.
A Itália enviou metralhadoras e armas ligeiras (30.000 AK-47 kalashnikov e
'rockets' antitanque), apreendidas há cerca de 20 anos pelas autoridades
judiciais italianas num navio com destino à ex-Jugoslávia.
A Albânia, a Polónia, a Dinamarca e a Estónia também anunciaram a entrega
de equipamentos militares.
O que se verificou no curso do
último ano foi o crescimento da área ocupada pelos jihadistas
e o incremento dos bombardeamentos desse território, primeiro pelas forças da difusa
coligação internacional e, mais recentemente, pelas forças russas, aliadas de
Bachar Al-Assad.
Há alguma similitude entre a criação dos “mujahidins”
do Afeganistão e os jihadistas do EI.
Os primeiros foram formatados para
combater o exército soviético, satadendo o seu recrutamento feito na população
afegã.
Gorados todos os sonhos e indemonstradas
todas as ilusões transformaram-se em talibãs.
Os jihadistas foram, essencialmente,
recrutados entre jovens desempregados e sem futuro, nos países europeus.
Treinados para combater os ditadores
(Saddam, Kadhafi, Assad), convertidos ao Islão e seduzidos para a criação de um
estado teocrático avançado, associando a tradição às novas tecnologias e aos
benefícios do conhecimento dos países ocidentais, transformaram-se numa força
ameaçadora, que já não se contenta com os limites do seu próprio projeto, que,
em 2014 tinha as fronteiras da Síria e do Iraque.
O próprio nome ISIS queria dizer Estado
Islâmico do Iraque e do Levante, sendo que o Levante é o antigo nome da Síria.
O objetivo primeiro do ISIS foi o da
ocupação/organização dos territórios do Iraque e da Síria como base de um
Estado.
O Iraque tem a 5ª maior reserva de
petróleo do Mundo.
A Síria tinha, em 2011, uma capacidade de
produção de 14.000 barris por dia.
São esses uns interesses motivadores
dos jihadistas, quase todos criados nos países ocidentais e educados nas suas
escolas.
Em novembro de 2015, foi
noticiado o homicídio do famoso Jihadi John, um britânico que é um dos cabeças
de cartaz da organização, aquele que aparecia vestido de negro a decapitar
reféns.
Na sexta-feira 13 de novembro, os
terroristas do Estado Islâmico atacaram Paris matando mais de 100 pessoas, com
a mesma frieza e a mesma cegueira com que a força aérea francesa mata gente no território
da Síria e do Iraque. Em Paris os terroristas dispararam sobre cidadãos
pacíficos que assistiam a espetáculos ou fruíam um tempo de lazer nos
restaurantes. Um coisa horrível, hedionda; mas que não é menos hedionda do que
os bombardeamentos.
Nos últimos meses somos
testemunhas dos efeitos do terrorismo dos Estados ocidentais.
Aqueles milhões refugiados a quem
cinicamente nos propomos acolher são pessoas de sorte, que só não morreram como
os desgraçados da sexta-feira 13 porque, tal como as pessoas que estavam no
Bataclan, passaram no intervalo da metralha.
No momento em que escrevo, as
agências dizem que os terroristas são todos, provavelmente, franceses e belgas,
sendo um filho de uma portuguesa.
Perante isto, não posso deixar de
ficar chocado quando vejo a Torre de Belém coberta com a bandeira francesa.
É de oportunismo atroz; e nem
sequer se compreende como é que tudo foi preparado para, de um momento para o
outro, se projetarem bandeiras francesas sobre os principais monumentos
europeus.
Será que os franceses sabiam que
iriam haver esta chacina em Paris, como parece que os americanos sabiam que
iria haver os 11 de setembro?
Seja como for, não faz nenhum
sentido colocar a bandeira francesa onde ela não deve estar, sobretudo quando a
França falhou em todas as dimensões.
Melhor fora que iluminassem o
Palácio Junot, na Rua Marquês de Fronteira, à frente do meu escritório, que é
um encoberto testemunho das invasões e da primeira tentativa de colonização de
Portugal.
Chocado fico, também, por ver a
bandeira francesa, símbolo da soberania da República Francesa, no frontispício da
nossa Assembleia da República, comos se as tropas napoleónicas tivessem voltado
de novo e tivéssemos, os das elites, que fugir para o Brasil e chamar os
ingleses para nos libertarem.
Claro que temos que condenar
veementemente os ataques terroristas feitos em território francês, na sexta
feira, 13 de novembro de 2015, mesmo que os seus autores possam ter sido cidadãos
franceses ou até um lusodescendente.
Deveríamos condenar, outrossim,
todos os outros ataques terroristas, nomeadamente os que são feitos sob as
cores da bandeira francesa, pelas suas forças armadas e que são tão terroristas
como os de Paris, se não acautelam a segurança dos cidadãos.
Parece-me que é um valor
adquirido o de que não é licito a nenhum estado bombardear indiscriminadamente
populações civis no território de outro estado.
O cúmulo do cinismo está nisto: a
República Francesa alimenta o jihadismo no seu próprio território, exporta jihadistas
para a Síria e para o Iraque e fica chocada se os mesmos ou outros despoletam
em Paris bombas que talvez sejam francesas.
Essa coisa que se intitula ISIS /Islamic
State of the Iraq and the Levant) – a quem a França reconhece a dignidade de
Estado quando qualifica os atentados de Paris como uma guerra – é, em boa
parte, uma criação francesa.
Paradoxal é que o ISIS diga que
os massacres de Paris são a reação aos bombardeamentos franceses das regiões
por ele controladas e que a França riposte dizendo que os bombardeamentos vão
continuar.
Os bombardeamentos em causa
ocorrem no Iraque e na Síria, que são países independentes e membros das Nações
Unidas.
É obvio que os meus amigos de
Paris ou de qualquer outra cidade francesa são tão titulares de direitos
humanos como as iraquianos e os sírios que habitam no território da Síria e do
Iraque, todos os dias fustigado por bombardeamentos cegos dos aliados e da Rússia.
Daqui é inevitável saltar para o
plano dos refugiados.
Estes não fogem, essencialmente,
dos terroristas do ISIS, mas dos bombardeamentos das forças ocidentais e da Rússia.
O Estado Islâmico ainda não tem
aviões...
Por tudo isto me parece que temos
que ser solidários com as vítimas, sejam elas quais forem, mas não podemos ser
solidários com os carrascos, sejam eles Estados
terroristas ou terroristas mercenários.
É óbvio que os bombardeamentos
cegos constituem terrorismo puro e são tão condenáveis como a sua versão
minimalista, que vimos em Paris na 6ª feira 13 de novembro.
Por favor não cubram as nossas
coisas com a bandeira francesa.
Por uma questão de higiene.