Portugal vai ter um novo governo, de centro direita, após uma campanha eleitoral em que os diversos partidos do arco do poder se preocuparam, essencialmente, em esconder aos portugueses aquilo que lhes interessa, realizando com a maior precisão artística, após o 25 de Abril de 1974, a definição de política feita, há muitos anos, por Paul Valery e que consiste nisso mesmo.
O que está em causa – e que todos os partidos do arco do poder ocultaram – é a questão de saber se, para além do pagamento da dívida pública, os portugueses devem pagar também as aventuras dos banqueiros nos últimos anos e, especialmente, os custos do favorecimento de que foram beneficiários os novos ricos da sociedade portuguesa.
Parece-me que há um relativo consenso na sociedade portuguesa relativamente ao pagamento das dívidas do Estado, sem prejuízo da necessidade de apurar até que ponto algumas delas não terão que ser reduzidas, por haver indícios de que o Estado foi enganado.
Penso que não há uma maioria em Portugal que ponha em causa, nomeadamente, as pequenas obras realizadas sem concurso público, em obediência a s lógicas de favor, nem sequer os gastos perdulários feitos pelo último governo, sob o mais variados pretextos.
Acredito, porém, que a maioria dos portugueses espera que o novo governo questione as contas das parceiras público privadas, sobretudo depois de serem conhecidas as críticas feitas pelo próprio Tribunal de Contas a esses negócios.
A questão maior não reside, porém, aí.
O Estado tapou, por iniciativa do governo de José Sócrates um buraco do Banco Português de Negócios, cuja dimensão é desconhecida, mas que se situará entre os 1,5 mil milhões de euros e os 5 mil milhões de euros.
Não se conhece nenhuma iniciativa séria para apurar quem foram os beneficiários dos recursos desviados desse banco, sendo certo que se aplica também ao dinheiro o velho princípio de Lavoisier que nos ensina que «na natureza nada se perde, nada se cria e tudo se transforma».
A questão mais importante suscitada pelo Memorando de entendimento imposto ao governo de José Sócrates pela troika é a de saber se os cidadãos (que são a base do Estado e a fonte dos seus rendimentos) deverão assumir a responsabilidade pelo pagamento das dívidas dos bancos.
Não se trata de garantir que o Estado pagará as dívidas que contraiu, no plano da dívida soberana, o que já admitimos como pacífico.
Trata-se sim de o Estado assumir ou não assumir a garantia do pagamento das dívidas que tenham ou venham a ser contraídas pelos bancos, que são entidades privadas, para além do mais beneficiárias de um regime especialíssimo de tributação.
Essa questão foi, manifestamente, oculta por todos os partidos do arco do poder durante a campanha eleitoral.
Ora, o Memorando prevê que o Estado – ou seja todos nós – entregue aos bancos 12 mil milhões de euros e que para além disso garanta emissões de bonds da ordem dos 35.000 milhões de euros (2.1).
Muito claramente é assim: nos termos do compromisso assumido com a troika, o governo obrigou-se a entregar aos bancos 12 mil milhões de euros e a não intervir na sua gestão privada mas, para além disso, a garantir o seu endividamento em mais 35.000 milhões.
No total são 47 mil milhões de euros que o Estado se compromete a entregar aos bancos.
Para que se tenha uma noção de grandezas o valor orçado para 2011 relativamente às despesas dos serviços integrados da Saúde é de apenas 8,2 mil milhões de euros sendo as da Educação de 6,5 mil milhões.
Ou seja: o que o Estado vai enterrar nos bancos corresponde a 5,73 vezes mais que a despesa anual no setor da Saúde e a 7,23 vezes mais que a despesa anual no setor da Educação.
Se compararmos esse valor com o custo do TGV (7,7 mil milhões) concluímos que o dinheiro a entregar aos bancos daria para pagar mais de 6 TGV, sendo suficiente para pagar quase 8 aeroportos do tipo do que está projetado para Alcochete.
E tudo isto acontece porque, por culpa dos seus dirigentes, os bancos realizaram níveis de alavancagem intoleráveis, dispondo de reservas inferiores a 9% da suas responsabilidades.
Para além de estarmos perante uma enorme injustiça, estamos perante um autêntico absurdo, contrário a todas as boas regras e a toda a propaganda que, durante anos, fizeram todos os partidos, no sentido de que o Estado não deve ingerir na economia, estando, por isso, impedido de ajudar as empresas em dificuldades.
O facto é especialmente grave porque nenhuma garantia tem o Estado nem de reaver esse dinheiro nem de evitar a falência das instituições financeiras. Tudo, para além de implicar um rotura com o atual ordenamento constitucional, na medida em que se dão essas medidas como certas sem que tenham sido aprovadas pelo Parlamento.
As elevadas taxas dos empréstimos negociados com a troika e as previsões de continuação da recessão, porque para além da falta de capital as medidas anunciadas tornam Portugal num país pouco atrativo para o investimento externo, em razão da elevada carga tributária, obrigam-nos a prever a impossibilidade objetiva de pagamento destes empréstimos, que outra função não têm que não seja a de salvar os credores estrangeiros das instituições financeiras portuguesas. Se tal previsão se cumprir, o valor da dívida disparará exponencialmente.
Para além o autêntico assalto aos bolsos do portugueses que esta ajuda ao sistema financeiro implica, está o Memorando cheio de ratoeiras, que protegem especialmente os bancos, em detrimento das pessoas e das empresas particulares.
Todos os progressos que foram feitos nos últimos anos, no quadro do processo falimentar, visando a aproximação da qualidade dos direitos da generalidade dos credores sem garantia serão anulados, com alterações ao Código da Insolvência, que privilegiarão os depositantes garantidos e os fundos na graduação dos créditos.
Tudo isto foi oculto aos eleitores, de forma mais ou menos habilidosa.
A maioria dos portugueses não sabe que o Estado gastou milhares de milhões de euros para proteger os acionistas e os administradores do BPN e nem sequer imagina – porque isso lhe foi escondido – que foram estabelecidos compromissos internacionais da dimensão atrás enunciada.
Os partidos ganhadores destas eleições foram unânimes na contestação da construção do TGV e do novo aeroporto. Mas, em contrapartida, dispõem-se a entregar aos bancos montantes que dariam para pagar 6 TGV´s ou 8 aeroportos.
Não há argumentos que justifiquem estas medidas. Se os atuais bancos estão falidos, o importante é liquidá-los, como acontece a qualquer outra empresa, permitindo que nasçam outros e sujeitando os novos ao cumprimento de regras prudenciais que evitem a repetição de situação idêntica.
O que é lícito nem legítimo e se afigura como politicamente muito perigoso é ocultar esta realidade aos portugueses, como o fizeram todos os partidos, com pequenas nuances apenas para o PCP e o BE que, ainda assim, participaram na ocultação.
Seria muito interessante organizar um referendo para saber o que o Povo diria sobre a matéria.
5/06/2011