Miguel Reis
Advogado
O governo liberal de Pedro Passos Coelho deu, sem nenhuma dúvida, a maior
machadada alguma vez aplicada no sistema financeiro português, ao decapitar o centenário
Banco Espírito Santo, que era o único banco com tradição no mercado português.
Fundado em 1869, o BES atravessou três séculos e era, em paralelo com a
associação mutualista Montepio Geral, fundada em 1840, a única instituição
financeira ligada a uma família de banqueiros portugueses.
Nacionalizado em 1975, como, aliás, aconteceu com todos os bancos,
incluindo o Banco de Portugal, o Banco Espírito Santo foi único que, no quadro
das privatizações, foi recuperado, em
boa parte, pela família e que conseguiu manter uma das mais prestigiadas marcas,
na área dos serviços financeiros.
Milhares de cidadãos, de todas as nacionalidades, muitos deles arrastados
por Cristiano Ronaldo, investiram as
suas fortunas em ações e produtos financeiros com a marca Espírito Santo e
viram, de um dia para o outro e sem qualquer aviso, que tinham perdido tudo.
Constataram que a sua desgraça se processou sob o patrocínio das mais altas
autoridades portuguesas, incluindo o Presidente da República.
A pior coisa que pode acontecer a um Povo que tem mais de três quartos da
sua população em diáspora – como é o caso do Povo Português – é assistir à
perda da dignidade dos seus símbolos, o mais alto dos quais é o Presidente da República.
Nenhum britânico aceitaria que a Rainha, apesar de não ser mais do que um
símbolo, se prostituísse em público.
Pelas mesmas razões nenhum português pode aceitar que o Presidente da
República Portuguesa engane os portugueses e, depois disso, se venha desculpar
com o Governo e Banco de Portugal.
Ninguém acredita que o tenham enganado, porque, se isso tivesse acontecido, ele teria
exonerado o Governo, no uso das suas prerrogativas constitucionais.
Alguma imprensa suscitou, desde o início de 2014, dúvidas sobre a qualidade
das contas do Banco Espírito Santo S. A. . Porém, nenhuma informação relevante
foi publicada, no mesmo sentido, tanto pelo Banco de Portugal como pela CMVM.
Desde muito cedo que se adivinhava que, de um dia para o outro haveríamos de
assistir à destruição do que sobra no nosso sistema financeiro com alguma
influência nacional.
Para além dos rumores acerca do BES, ouviu-se um tiro de aviso
relativamente ao Montepio, ficando abalada, de um dia para o outro, a imagem
das únicas instituições de crédito privadas, com capital essencialmente
português.
Claro que se voltou a falar, em simultâneo, da privatização da Caixa Geral
de Depósitos.
Porém, Em vez de difundir informação que acautelasse os investidores e
evitasse que fossem prejudicados, as autoridades tudo fizeram para anular as
mensagens de aviso difundidas pela imprensa, como se estivessem a preparar, sub-repticiamente,
um golpe.
Parece hoje cada vez mais claro que houve pessoas e instituições que,
deliberadamente, enganaram os investidores e agiram de forma adequada a
causar-lhes prejuízos, o que afeta, de forma gravíssima, a credibilidade do mercado
de capitais.
Juraram a pés juntos, em Portugal e no estrangeiro, que o BES era um “banco
bom” e muito sólido, com uma enorme almofada de capital, para, de um momento
para o outro o diabolizarem e transformarem em “banco mau”.
Num domingo à noite, o Banco de Portugal, que deveria ser uma entidade
séria, protetora dos pequenos investidores, resolveu confiscar os bens e
valores do Banco Espírito Santo S.A. e ordenar a sua transferência para uma
entidade artificial que ele próprio criou, usando dinheiros públicos – o Novo
Banco S.A. - para receber os despojos do confisco.
Mas foi mais longe. Apesar de dever saber que é feio cuspir na sopa,
convidou para a administração do Novo Banco S.A. os administradores do próprio
banco que saqueou, esquecendo que os mesmos, cooptados como tinham sido pelos
administradores do Banco Espírito Santo S.A., estavam obrigados a especiais
deveres de lealdade, em conformidade com o disposto no Código das Sociedades
Comerciais.
O que aconteceu a seguir é, pura e simplesmente indescritível, à luz de
qualquer ordenamento jurídico moderno:
a)
A escrita mercantil do Banco Espírito Santo S.A. foi
profanada e apropriada pela entidade que o regulador-ditador fundou;
b)
As contas bancárias dos clientes do Banco Espírito Santo
S.A. foram confiscadas e passaram a ser geridas por uma entidade estranha, com
quem os clientes não contrataram, contra a sua vontade ou sem manifestação de
vontade;
c)
Os trabalhadores, mirabile
visu, também terão sido “transferidos”, como se isso fosse possível ou
legalmente admissível por força de um diktat
do regulador.
d)
Não há qualquer evidência de que tenha sido feita
qualquer contabilização das transferências do Banco Espírito Santo S.A. para o
Novo Banco S.A. nem se sabe que documentos de suporte terão suportado as
operações contabilísticas, se é que alguma delas existiu.
e)
A própria sede do Banco Espirito Santo S.A. foi tomada
pelo ocupante, sem que se saiba onde está a fronteira entre o que, maldosamente
chamam de “banco mau” e de “banco bom”, apondo-se a primeira etiqueta ao Banco
Espírito Santo, depois de o mesmo ter sido saqueado.
Perante este quadro, afigura-se que a demissão da administração do Novo
Banco S.A. é uma excelente notícia para os acionistas do Banco Espírito Santo
S.A..
Trata-se do primeiro sinal da derrota de um projeto de confisco do Banco,
de que são responsáveis principais a Ministra das Finanças e o Governo do Banco
de Portugal.
Mas a notícia da nomeação de um
quadro bancário comprometido com a banca estrangeira é uma mau sinal; diria mesmo
que um péssimo sinal, porque indicia um envolvimento de representantes de
interesses estrangeiros numa questão que é, antes de tudo, nacional.
A
resolução como solução de higiene
Uma medida da resolução só admissível se for uma medida de higiene.
Não pode aceitar-se uma medida de resolução para destruir um banco e repartir
o que ele representa pelos respetivos
concorrentes, sob pena de induzirmos na sociedade uma regra antropofágica, que
levará a fazer o mesmo por relação aos cabeleireiros, aos restaurantes, aos
vendedores de fruta ou aos escritórios de advogados.
Não se conhece, até ao momento, nenhuma posição nem nenhuma diligência da
Autoridade da Concorrência, relativamente ao “caso Banco Espírito Santo”, sendo
certo que, por força da lei, atenta a dimensão do Banco, este “fenómeno” não
lhe pode ser estranho.
A repartição de mercados e das fontes de abastecimento é, por regra, proibida,
devendo entender-se, em coerência com a lógica intrínseca do sistema jurídico,
que não deve nenhum regulador adotar medidas que atinjam esse objetivo, ainda que por via indireta.
É claro e inequívoco que não pode pretender-se uma
solução limpa – higiénica – se se envolve no processo alguém que está a
trabalhar para a concorrência.
Depois da exoneração de Vitor Bento, Moreira Rato e José Honório,
a nomeação de um quadro do Lloyds Bank, um assistente de Horta Osório, é um
desastre.
Eduardo Stock da Cunha, é um bancário profissional; mas
não é um banqueiro nem um homem de ideias. Não se lhe conhece uma, não se lhe
conhecem livros nem artigos publicados.
Será que o Banco de Portugal encontrou nele o “ladrão de
bicicletas” que precisa para a sua estratégia de venda rápida do produto do
saque?
Algumas
normas legais relevantes
Dispõe o artº 91º Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades
Financeiras:
1 - A superintendência do mercado monetário,
financeiro e cambial, e designadamente a coordenação da atividade dos agentes
do mercado com a política económica e social do Governo, compete ao Ministro
das Finanças.
2 - Quando nos mercados monetário, financeiro e
cambial se verifique perturbação que ponha em grave perigo a economia nacional,
poderá o Governo, por portaria conjunta do Primeiro-Ministro e do Ministro das
Finanças, e ouvido o Banco de Portugal, ordenar as medidas apropriadas,
nomeadamente a suspensão temporária de mercados determinados ou de certas
categorias de operações, ou ainda o encerramento temporário de instituições de
crédito.
O artº 93º do mesmo Regime Geral estabelece o
seguinte:
1 - A
supervisão das instituições de crédito, e em especial a sua supervisão
prudencial, incluindo a da atividade que exerçam no estrangeiro, incumbe ao
Banco de Portugal, de acordo com a sua Lei Orgânica e o presente diploma.
2 - O
disposto no número anterior não prejudica os poderes de supervisão atribuídos à
Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.
3 - O
Banco de Portugal deve, no exercício das suas competências, avaliar o impacte
potencial das suas decisões na estabilidade do sistema financeiro de todos os
outros Estados membros da União Europeia interessados, especialmente em
situações de emergência, com base nas informações de que, em cada momento,
disponha.
4 - No
exercício das suas competências, o Banco de Portugal deve ter em conta a
convergência relativamente aos instrumentos e práticas de supervisão na
aplicação da lei e da regulamentação adoptadas em cumprimento da Directiva
n.º 2006/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Junho.
5 - Para
efeitos do disposto no número anterior, o Banco de Portugal deve:
a) Participar nas atividades da Autoridade Bancária
Europeia;
b) Seguir as orientações e recomendações da Autoridade Bancária
Europeia ou, quando não o faça, indicar os fundamentos da sua decisão.
6 - O
mandato conferido ao Banco de Portugal nos termos da lei portuguesa não
prejudica o desempenho das suas funções no âmbito da Autoridade Bancária
Europeia ou nos termos da Diretiva n.º 2006/48/CE, do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2006.
Elefantes
em loja de porcelanas
É da natureza das instituições financeiras a ideia de que
os bancos são como as porcelanas expostas em lojas que não podem ser frequentadas
por elefantes.
Ora, o que aconteceu no chamado “caso BES” tem sido, em
tudo, muito semelhante à incursão de uma manada de elefantes numa loja de
porcelanas.
É cada vez mais evidente que as pessoas responsáveis pela
produção de informação sobre as contas do BES produziram informação falsa,
começando a multiplicar-se os indícios de que quem a recebeu não respeitou,
tampouco, a obrigação legal de promover os adequados procedimentos criminais.
Os testemunhos e
algumas notícias que tem sido publicadas nas últimas semanas justificam que a
Procuradoria Geral da República ordene a abertura dos inquéritos adequados à
investigação dos indícios de crime que, porque foram noticiados, são públicos.
É positiva, muito positiva, a censura aplicada aos
sucateiros de influências.
É intolerável que nada se faça relativamente aos
sucateiros da política.
Parece inequívoco que a supervisão bancária – tanto no
plano mais amplo da superintendência como no estrito plano da supervisão
prudencial – falharam, sendo inevitável responsabilizar o Banco de Portugal, o
Estado e os diversos agentes de um e outro, pelos prejuízos emergentes das respetivas
omissões e, sobretudo, da omissão-ocultação de informação relevante para a
tomada de decisões de investimento.
A primeira consequência de todo este drama (se não
quiserem chamá-lo de comédia) deveria ser, se vivêssemos numa democracia madura
e consolidada, uma consequência política: deveria ser demitida a Ministra das
Finanças e substituído o Conselho de
Administração do Banco de Portugal, no seu conjunto, promovendo-se a
investigação criminal relativamente a uma e a outros.
A Ministra e a Administração do Banco de Portugal são,
pelos poderes deveres de que são titulares e pela omissão do cumprimento dos
mesmos, responsáveis diretos pelo engano
de que foram vitimas não só os investidores que acorreram ao último aumento de
capital do Banco Espírito Santo, mas também os que, enganados, não deram ordem
de venda dos títulos de que eram titulares.
É importante ter
presente o disposto no artº 217º,1 do
Código Penal, que dispõe o seguinte:
“1 - Quem,
com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por
meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar
outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo
patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
E o artº 218º:
1 - Quem
praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo
patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de
multa até 600 dias.
2 - A
pena é a de prisão de dois a oito anos se:
a) O
prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;
b) O
agente fizer da burla modo de vida;
c) O
agente se aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em
razão de idade, deficiência ou doença; ou
d) A
pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica.
Nenhuma dúvida de que as pessoas, físicas e jurídicas, que compraram ações
do Banco Espírito Santo depois do aumento de capital e até à suspensão da
negociação em bolsa foram vitimas de uma burla, tal como o crime é qualificado
pelo Código Penal.
Dúvidas não há acerca da intenção de obter um enriquecimento ilegítimo,
para terceiros e um prejuízo dos que foram ao aumento de capital e dos que não
venderam as ações de que eram titulares, pois que tal enriquecimento não
ocorreria se tivesse sido revelada a verdade, ou se, pelo menos, não se desmentisse o que foi
divulgado pela comunicação social.
Os beneficiários dos resultados da burla foram, imediatamente, o Banco
Espírito Santo S. A. e, mediatamente, o Novo Banco S.A., para quem o Banco de
Portugal ordenou a transferência de quase todos os valores, entre os quais os
do referido aumento de capital.
Mas não pode deixar de ser investigada a própria pessoa do Presidente da
República, que garantiu a quem o quis ouvir que o Banco Espírito Santo era um
banco seguro, não podendo deixar de prever que, com isso, causaria prejuízos de
milhões de euros.
Supervisão,
falsificação e contabilidade
A supervisão, tanto no âmbito do mercado financeiro como no âmbito do
mercado imobiliário é um imperativo, que visa garantir níveis mínimos de
segurança dos clientes e dos investidores, sobretudo daqueles que, pela sua
pequenez, não têm acesso à informação da sociedade de que são acionistas.
A escrita mercantil das sociedades comerciais está sujeita a regras muito
exigentes e à certificação por profissionais, a quem as leis impõem especiais
cuidados relativamente ao rigor das contas e à verificação da legalidade dos
lançamentos bem como à qualidade da
informação produzida e a que a lei confere fé pública.
Os revisores oficiais de contas estão obrigados a comunicar ao Ministério
Público os crimes de que tenham conhecimento, nomeadamente os que respeitem à
falsidade da escrita.
Na mesma linha, os técnicos oficiais de contas estão obrigados a respeitar os princípios adequados à
formalização de uma escrita limpa e sem mácula.
Se a supervisão falhou e se há irregularidades na escrita do Banco Espírito
Santo, o Ministério Público e as polícias têm que investigar como, quando e por
que é que isso aconteceu e quem são os responsáveis, constituindo arguidos
aqueles que sejam suspeitos da prática
de crimes.
Para já, é incontornável uma constatação: há pessoas que perderam milhares
de milhões de euros que investiram em ações do
Banco Espírito Santo S.A., porque foram, objetivamente, enganadas até ao
último minuto.
É essencial que o Ministério Público e as polícias recolham, quanto antes,
a prova indispensável à investigação desses delitos e do de inside trading, de que também há fortes
indícios.
O que é absolutamente inadmissível – porque não merece nenhuma
credibilidade é que se estoire com um dos maiores bancos do país, na base de
acusações vagas e abstratas e, pior do que isso, ocultas, por que não reveladas
sequer aos principais interessados, que são os acionistas.
Independentemente da controversa questão de saber se a medida de resolução
é admissível, por haver sérias dúvidas acerca da sua legalidade e do respeito por
princípios estruturantes do direito europeu, há uma realidade que é
incontornável e que se refere à qualidade da escrita mercantil.
A resolução, podendo ser, embora, um confisco, com idêntico efeito ao de um
assalto, não pode ser um assalto selvagem, sem contabilização rigorosa, até ao
último cêntimo, de todos os elementos do negócio.
Não pode nenhum valor, positivo ou negativo, ser transmitido do Banco
Espírito Santo para o Novo Banco sem ser contabilizado, verba a verba, em
conformidade com as normas reguladores da contabilidade e sem que as contas
sejam, também rigorosamente objeto de
certificação legal.
A grande diferença entre uma operação de nacionalização e uma operação de
separação de patrimónios e de transmissão de parte do património para uma nova
entidade, de que não são acionistas os do banco originário reside no facto de,
no primeiro quadro, prosseguir a vida da mesma pessoa jurídica, embora com nova
administração e de, no segundo quadro, estarmos perante uma sequência de
negócios jurídicos entre duas entidades.
No primeiro quadro mantém-se a mesma escrita.
No segundo quadro é indispensável que haja duas escritas independentes,
autónomas e com responsáveis próprios, que assegurem a absoluta higiene das
operações contabilísticas.
O que não pode aceitar-se – porque ofende a essência do direito – é que,
para além do confisco dos valores, o regulador-ditador proceda também ao
confisco da escrita, de forma a inviabilizar que as pessoas que foram usurpadas
possam exercer os seus direitos.
Não acreditamos que se tenha chegado ao grau zero do direito.
Não acreditamos que o roubo puro e simples – ainda que o conceito de roubo
se encare apenas numa perspetiva moral – possa justificar-se com critérios de
interesse público.
Por tudo isso entendemos que, sem prejuízo do que possa vir a decidir-se relativamente
a todas as questões jurídicas suscitadas pelo “Caso BES” é absolutamente indispensável
esclarecer tudo e contabilizar tudo.
O
fim do mercado de capitais
A postura dos reguladores e, sobretudo, a postura do Presidente da República
relativamente ao “caso BES” afetaram, de forma irreversível o mercado de
capitais português.
É óbvio que, depois do que se passou, só quem for louco é que aplica os
seus recursos no mercado de capitais em Portugal.
O momento é, por isso, de desinvestir, porque nada é seguro.
E vão ser necessários mais 40 anos para, devagar, e começar a trabalhar no sentido
da recuperação da credibilidade do nosso mercado de títulos.
A conclusão é simples e precisa: em pouco mais de um mês deram cabo de
tudo.