A questão das mensagens
de SMS trocadas entre o ministro das Finanças português, Mário Centeno e um
gestor bancário convidada pelo governo para a administração da Caixa Geral de
Depósitos suscita sérios problemas no plano dos direitos fundamentais.
É certo que o artº 178º,5 da Constituição da República
determina, sem margem para dúvidas, que “as comissões parlamentares de
inquérito gozam de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”.
Mas é mais do que
duvidoso que, por isso mesmo, possam violar o sigilo das comunicações privadas.
As autoridades
judiciais não têm poderes para tanto, exceto num quadro muito limitado, a
benefício da investigação criminal de crimes graves.
O artº 134º,1 da
Constituição é inequívoco no sentido de que “o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros
meios de comunicação privada são invioláveis.”
O nº 2 dispõe que “a entrada no
domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela
autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei.”
O nº 3 do mesmo artº 134º
determina que “ninguém (nenhuma autoridade) pode entrar durante a noite no
domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento, salvo em situação de
flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos de criminalidade
especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o
tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes, nos termos previstos na lei.”
Na mesma linha, norma da mesma família, a do número 4, estabelece que “é proibida toda a ingerência das
autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais
meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo
criminal”.
O Código de Processo Penal define, com extrema precisão os quadros em que
podem ser excecionadas essas regras constitucionais.
O artº 177º do CPP regula as buscas domiciliárias, determinando que
elas só podem realizar-se entre as 7 e as 21 horas e que têm que ser ordenadas
ou autorizadas por um juiz, sem prejuízo dos quadros referidos na parte final
do nº 3 do artº 134º da Constituição.
A intercepção das comunicações
telefónicas suscita especiais problemas no plano da privacidade com quem a
pessoa alvo esteja a comunicar.
Nos termos do artº 187º,1 do Código
de Processo Penal, “a interceção e a
gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas
durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é
indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra
forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz
de instrução e mediante requerimento do Ministério Público”, quanto a um grupo
de crimes graves, referenciados nesse normativo.
O artº 189º do mesmo CPP determina que o disposto nos
artº 187º e 188º é aplicável “às conversações ou
comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone,
designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por
via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção
das comunicações entre presentes. “
Nos termos do disposto
no artº 156º,f da Constituição da República, os deputados têm poderes para requerer a constituição de comissões
parlamentares de inquérito, determinando o artº 178º,5 da mesma lei fundamental “as comissões
parlamentares de inquérito gozam de poderes de investigação próprios das
autoridades judiciais”.
O texto constitucional é manifestamente infeliz, na
medida em que permite sugerir uma espécie de apropriação de poderes que
pertencem ao judiciário mas, sobretudo, na medida em que pode ser interpretado
numa lógica antidemocrática ou mesmo numa lógica totalitária.
Todos aqueles direitos fundamentais são, em princípio,
invioláveis, só podendo ser excecionados por decisão judicial fundamentada com
o estrito objetivo da investigação criminal.
Não há, nem na lei nem na constituição nenhuma norma
que permita violar aqueles direitos fundamentais sem que haja necessidade de
investigar e punir a prática de um crime daquele grupo que legislador excecionou.
É certo que a Constituição determina que as comissões
parlamentares de inquérito gozam dos “poderes de investigação próprios das
autoridades judiciais”
Só que não é isso que está em causa.
O que está em causa é a adoção de práticas que ofendem
direitos fundamentais sem que estejam preenchidos os pressupostos que
justificariam tais ofensas e que são, como atrás se referiu, a absoluta
necessidade da quebra da garantia constitucional para investigar a prática de
crimes.
No nosso edifício constitucional, os direitos
fundamentais podem ser afetados em certas circunstâncias, a beneficio de outros
direitos ou de outros imperativos constitucionais, como é o caso da investigação
criminal.
A concordância prática justifica que uns direitos se
reduzam na estrita medida do necessário para que outros sobrevivam.
Não há nenhum indício de crime nas mensagens privadas
que o ministro das Finanças e o gestor bancário trocaram.
Tanto quanto se sabe, não combinaram entre si nenhuma
operação de branqueamento de capitais, nenhum esquema de corrupção nem nenhuma
operação de favorecimento pessoal.
Se o tivesse feito ou se disso houvesse indício,
poderiam ser apreendidas as mensagens de SMS; mas não era pela comissão
parlamentar. Teria que ser um juiz a ordená-lo em despacho fundamentado.
É que, embora a Constituição confira às comissões
parlamentares de inquérito os mesmos poderes de investigação “próprios das autoridades
judiciais” o certo é que determina que o sigilo das comunicações é inviolável e
que só pode ser quebrado no quadro da investigação criminal e com os limites
impostos na lei.
Importa relevar, para além de tudo isso, os direitos
dos demais cidadãos.
É evidente que o acesso a mensagens de SMS recebidas ou
enviadas por uma pessoa não é cognoscível por via de mera cópia das mesmas,
importando, necessariamente um acesso ou aos registos das contas telefónicas do
emissor e do recetor ou um acesso aos telefones de ambos.
Tal tipo de acessos só é viável no quadro da investigação
criminal e se isso for absolutamente necessário para a investigação de crimes
tão graves como são os previstos na lei: crimes puníveis com pena de prisão
superior, no seu máximo, a 3 anos; crimes relativos ao tráfico de
estupefacientes; crimes de detenção de arma proibida e de tráfico de armas; crimes de contrabando; crimes de injúria, de ameaça,
de coação, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando
cometidos através de telefone; crimes de ameaça com prática de crime ou de
abuso e simulação de sinais de perigo; ou de evasão, quando o arguido haja sido
condenado por algum dos crimes previstos nas alíneas anteriores.
Ora, ao que parece, a única razão que justifica a
apetência da devassa dos referidos SMS é, segundo os media, uma espécie de
crime político, não previsto na lei nem tipificado e, inquestionavelmente, sem
nenhuma consequência jurídica, se eventualmente se viesse a provar que o
ministro tivesse dito que o gestor seria dispensado de apresentar a declaração de
património.
É por demais óbvio que o SMS não teria nenhum valor jurídico,
ou teria que ser interpretado como uma declaração negocial nula a todos os títulos.
Mas há outros problemas que tanto a devassa como a
divulgação dos SMS suscitam.
Todos os cidadãos são titulares de direitos que
asseguram a privacidade da sua vida privada, nomeadamente da vida familiar e da
vida sexual. Esses valores jurídicos são protegidos pelo artº 192º do Código
Penal, que incrimina da devassa da vida privada.
Na mesma linha, o artº 194º do Código Penal incrimina da
violação da correspondência e das telecomunicações, punindo quem tomar
conhecimento de mensagens que não lhe são dirigidas.
Fora dos quadros legais em que a lei permite a violação da privacidade do
domicilio e das comunicações não é admissível qualquer devassa, maxime por motivos políticos.
Os deputados não são polícias e é inaceitável que, num estado democrático
de direito, se comportem como agente de recuperação de uma intolerável bufaria.
É prudente que não falemos ao telefone. E é, ainda mais prudente, que não
enviemos mensagens de SMS e que apaguemos as que recebemos.
Os fascistas, em comparação com esta canalha, eram uns meninos do coro...
Lisboa, 18/2/2016
Miguel Reis