Nunca senti o Dia de Portugal, de
Camões e das Comunidades como o sinto hoje, forçado que fui, como muitos dos que
não vivem pendurados nas tetas do Estado, a procurar a vida no estrangeiro.[i]
O 10 de junho é, essencialmente,
a comemoração de uma trindade: Portugal, Camões e Emigração.
Mais do que o Poeta, Camões foi o
maior emigrante de todos nós; mais que o Ferreira de Castro, mais que o Torga,
mais que o Eduardo Lourenço; mais do que o Adriano Correia de Oliveira; e, naturalmente,
muito mais do que eu.
Todos, com vontade de voltar,
continuamos a vibrar com a poesia com que Correia de Oliveira celebrou o Cantar
de Emigração
Este parte, aquele parte
e todos, se vão
Galiza ficas sem homens
que possam cortar teu pão
Tens em troca
órfãos e órfãs
tens campos de solidão
tens mães que não têm filhos
filhos que não têm pai
Coração
que tens e sofre
longas ausências mortais
viúvas de vivos mortos
que ninguém consolará.
Desconfiados?
Sim, naturalmente, porque a Mãe
Pátria, que nos negou espaço, sempre nos tratou e continua a tratar como
Portugueses de segunda, sendo certo que, no Brasil, continuamos a ser os
Portugueses, sobre quem se contam anedotas.
Somos todos padeiros ou tratados
como tal e não se pode fugir a isso, que nos está na massa do sangue, de
Portugueses e Brasileiros.
Ser Português no Brasil não é
fácil. É preciso ter capacidade de
encaixe do preconceito de ser Português.
Esta terra maravilhosa consegue
conciliar a generosidade de bem receber, que, infelizmente, não retribuímos e
esse sarcástico cliché que nos coloca no centro do anedotário nacional, em que
o Português, rude, iletrado e ambicioso, aguenta todas as humilhações que lhe
queiram fazer.
Lisboa continua a tratar-nos como
se fosse a capital do império, aqui fosse a colónia e todos fôssemos marçanos,
porque também desse lado há clichés. E esses clichés continuam a ser
desrespeitosos para os emigrantes.
Acordem e concluam que os
emigrantes de hoje e os seus descendentes já não são os agricultores
analfabetos e rurais de que falava Alexandre Herculano; e que a justificação da
emigração já não está numa agricultura obsoleta, que moldou um concreto tipo
humano.
Acho que todos poderíamos escrever,
como Ferreira de Castro, na antevisão da necessidade de um espaço para repousar
no solo pátrio: “Nunca pedi nada à minha pátria, nunca pedi ou jamais recebi
qualquer favor ou amparo oficial...”
Isso não significa que não tenhamos
saudades nem sentimentos; e que estejamos dispostos a aguentar tudo, todas as
farsas e todas as mentiras.
Temos nos sentimos quando nos
ofendem; e, se não pedimos qualquer favor ou amparo oficial, exigimos, no mínimo,
respeito.
Vem tudo isto a propósito das
comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas de
2017.
Foi anunciado que o Presidente da
República, Marcelo Rebelo de Sousa e o Primeiro Ministro, António Costa, depois
de terem comemorado a data no Porto, se deslocam a São Paulo e ao Rio de
Janeiro para se encontrar com as comunidades portuguesas nestas cidades.
Trata-se de uma chocante mentira, ao
menos no que se refere a São Paulo.
Nesta cidade, foi organizado um
evento, no Teatro Municipal, que é fechado a um número reduzido de portugueses,
escolhidos a dedo pelas autoridades, com discriminação de todos os demais.
O Teatro Municipal tem menos de
1500 lugares.
Foi anunciado que haveria bilhetes
à venda, para ajudar a Provedoria, uma respeitável instituição portuguesa; mas
até isso é uma grosseira mentira.
Se não nos querem tratar como “cidadãos
normais” – daqueles a que refere o artigo 13º da Constituição da República
Portuguesa, ao menos não nos ofendam.
Todos os cidadãos têm a mesma dignidade
social e são iguais perante a lei.
Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado,
prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão
de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções
políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou
orientação sexual.
À luz
destes princípios, é absolutamente inadmissível que o Presidente da República,
o Primeiro Ministro, diversos ministros e deputados, usando dinheiros públicos,
se desloquem ao Brasil para conviver durante umas horas com uma meia dúzia de
pessoas que não são a comunidade portuguesa nem a representam, representando-se,
tão só, a eles próprios.
Porque
o evento vai decorrer num teatro, estamos perante uma encenação, que não é uma
encenação qualquer.
É uma
encenação destinada a humilhar todos os outros Portugueses, que forma excluídos
quiçá porque sobre eles continua o estigma oficial segundo os quais são feios,
porcos e padeiros.
Se eu
fosse convidado, não iria, porque acho que estamos perante um espetáculo desnecessário
e deplorável.
Não é
menos grave do que a separação entre brancos e pretos no tempo do apartheid.
Não havia
necessidade.
Suas
Excelências poderiam ter combinado participar na cerimónia junto à estátua de Luís
de Camões, que se realizou no dia 10 de junho e se poderia ter realizado no dia
11.
Poderiam
ter organizado um encontro aberto, convidando toda a comunidade, num espaço
amplo como, por exemplo, o Estádio da Portuguesa.
Não
deveriam é ter aceite participar num evento que, pela sua natureza, só serve para
dividir a comunidade entre bons e maus, feios e bonitos.
Tudo
isto é especialmente importante nos dias de hoje, que nos envolvem a todos numa
crise sem precedentes e nos obrigam a especialíssimos cuidados.
O Brasil, tal como previ há anos, transformou-se
num cemitério para muitas empresas portuguesas, de todas as dimensões.
O tempo
é de desinvestir e de tentar recuperar, sobretudo, o que puder salvar-se dos
pequenos investimentos, o que exige uma especial atenção do Estado.
Por
outro lado, vive-se no Brasil um tempo
de êxodo, que apela à compensação da fraternidade.
A vida
tornou-se impossível para muitas famílias brasileiras e há um movimento
migratório muito forte, sendo que um dos países de destino é Portugal.
A
emergência do Brexit obriga-nos, outrossim, a pensar nos brasileiros e a
equacionar soluções que permitam a sua instalação em Portugal.
Façamos
o que fizermos, nunca faremos o que o Brasil fez por Portugal.
Isso
não justifica, porém, o vale-tudo.
Há que definir
uma política de emigração clara e que, ao mesmo tempo, manter procedimentos rigorosíssimos,
no que se refere ao registo civil e ao registo da nacionalidade, de forma a manter a credibilidade dos documentos
portugueses.
As
alterações à Lei da Nacionalidade, perspetivando a atribuição da nacionalidade
portuguesa aos netos de nacionais portugueses constituem uma interessante
evolução que, porém, suscita problemas novos, para os quais é indispensável a
tomada de medidas.
O
volume das falsificações de documentos no Brasil atingiu níveis absolutamente
intoleráveis, sendo de ressaltar uma extrema qualidade das mesmas.
Há
organizações que pesquisam documentos em Portugal e que fazem os documentos intergeracionais
por medida.
Este
tipo de falsificações é muito difícil de detetar pelo que é especialmente importante o contacto pessoal
com o interessado (que, geralmente, se denuncia a ele próprio) e uma análise
especialmente cuidadosa de toda a documentação.
Afigura-se,
por isso, absolutamente intolerável que Portugal permita que as senhas de
identificação e as palavras passe de acesso ao seus sistema de registos e de
emissão de cartões de cidadão e de passaportes possam ser usadas por terceiros,
que nem sequer são funcionários, ainda que estes o autorizem.
Isto,
associado ao facto de os processos de nacionalidade e de registo civil poderem
ser traficados por qualquer despachante, permite tudo e mais alguma coisa.
Acho
lastimável que o Presidente da República, o Primeiro Ministro e deputados de todos os partidos deem cobertura
a esta triste realidade.
São
Paulo, 10 de junho de 2017
Miguel Reis