Uma das coisas mais fantásticas do nosso tempo é a facilidade com que se consegue destruir alguém famoso ou próximo de um centro de poder.
O fenómeno não é novo, mas tem vindo a ganhar um sofisticação progressiva.
A primeira vítima, após o 25 de Abril de 1974, foi Edmundo Pedro. Um homem com um notável curriculum de luta contra o anterior regime, com mais de quinze anos nas prisões da ditadura, figura de topo do Partido Socialista, foi literalmente liquidado, com a conivência do seu próprio partido, após o lançamento na imprensa de notícias que o davam como personagem central de uma rede de contrabandistas.
Veio mais tarde a apurar-se que era tudo falso e que Edmundo Pedro, então administrador da RTP, limitava a sua ação ao cumprimento do dever cívico, que tinha assumido, de recolher as armas que os militares lhe haviam confiado para distribuir às hostes do Partido Socialista antes do 25 de Novembro.
As mais altas personalidades políticas do país tinha conhecimento desse facto e ninguém ousou falar a verdade.
Uns anos depois assistimos à liquidação de Duarte Lima. Uma fonte judiciária comprometida com o seu próprio partido colocou nas mãos de um jornalista de esquerda documentos que pareciam irrefutáveis para a prova de uma série de operações que implicavam movimentos irregulares de capitais e fuga ao fisco. O jornalista, de boa fé, publicou num jornal um conjunto de noticias que implicaram o fim político desse dirigente social-democrata.
Mais tarde tivemos o caso Casa Pia, que afetou terrivelmente o bom nome de Paulo Pedroso e que liquidou profissionalmente Carlos Cruz, uma das mais populares figuras da televisão portuguesa, no momento em que ele se preparava para coroar de glória e de fortuna o esforço que fez para a conquista por Portugal do Euro 2004.
Nenhum dos primeiros dois escândalos resultou em condenação para os acusados.
Edmundo Pedro, em vez de condenado foi absolvidos com louvores e, depois disso, muitos anos depois, como se se arrependesse da injustiça, o país tem feito a justiça de o reconhecer como um exemplo de político impoluto.
Duarte Lima não sofreu nenhuma condenação mas foi obrigado a fazer uma vida discreta, ofendido na sua honra e na sua imagem.
Paulo Pedroso, inocentado pelos tribunais superiores, tem procurado, sem nenhuma hipótese de sucesso, afirmar-se na luta política. Mas nunca ninguém lhe tirará o handicap que resulta do terrível envolvimento naquele estranho processo.
Carlos Cruz, se for julgado inocente, morrerá sem que a sua imagem seja reparada, porque é impossível reparar uma imagem tão marcada pela suspeita.
Que me lembre, houve apenas dois políticos, envolvidos em escândalos mediáticos, que compreenderam o que é a comunicação social. Um foi António Vitorino e outro foi Jorge Coelho.
António Vitorino foi acusado por um jornal de se ter furtado aos impostos numa operação de troca de uma propriedade, em termos que eram, na época, muito comuns e tolerados pelo fisco.
Desmentiu que tivesse fugido ao fisco e demitiu-se, porque percebeu que só o atacavam por ser ministro, residindo o problema nessa qualidade. Deixando de o ser, deixava de ser interessante para a comunicação social continuar o folhetim.
Jorge Coelho, quando alguns jornais suscitaram suspeitas relativamente ao seu ministério em matéria de negligência na conservação da ponte de Entre-os-Rios, foi mais longe e, antes que o acusassem, saiu do governo, usando o mesmo mecanismo de defesa.
As primeiras conclusões que estas observações importam são muito lineares.
Há uma relação permanente de tensão entre a comunicação social, o poder e a sociedade que conduz a que a relevância social que marca os factos que são notícia dependa, em alto grau, do poder dos protagonistas. O mesmo facto que seria notícia, durante dias e dias, se o ator principal é um agente do poder, deixa de o ser se ele deixar de sê-lo.
Dias Loureiro esteve no centro dos noticiários até se demitir do Conselho de Estado. Agora, apesar de lhe terem sido assacadas responsabilidades de milhões de contos, ninguém fala dele, como se já tivesse sido absolvido das acusações contra ele dirigidas.
No caso mediático mais recente, que envolve o nome de Armando Vara, ele foi cabeça de cartaz em todos os jornais e noticiários de televisão até ao dia em que se demitiu de vice-presidente do Banco Millenium. Depois disso ninguém terá interesse em atacá-lo e provavelmente entrará no esquecimento, porque deixou de estar numa cadeira de poder.
É notável o editorial de Pedro Santos Guerreiro no Jornal de Negócios de 4/11/2009:
«E ao fim de seis dias na fritadeira, Armando Vara pediu a suspensão do seu mandato no BCP. Sai pelo seu próprio pé. Depois de lhe terem posto um par de patins. Vara teve compreensão lenta: só percebeu ontem o que para todos era evidente há uma semana… Vara pode queixar-se do tribunal popular dos últimos dias. Da devassa da sua vida pela violação do segredo de justiça. Foi cilindrado, sem hipóteses de defesa, o que o próprio deixou agravar pela demissão tardia.»
Gostei especialmente da expressão «fritadeira» e da lembrança que ela nos traz do campo de concentração do Tarrafal; e não posso deixar de lhe associar a ideia, com que se fica depois da leitura do escrito, do gozo pessoal do jornalista relativamente à tortura a que aquele personagem foi sujeito.
Estamos, claramente, perante jogos de poder e este não é mais do que o gesto mimético de um vencedor, semelhante ao do outro soldado, que vimos há dias na televisão, a cumprir a missão histórica de disparar as duas rajadas de metralhadora que mataram o ditador Nicaolae Ceausescu e sua mulher Elena[1].
O sistema mediático constitui um poder autónomo, por relação ao poder político e ao poder judiciário, conluiando-se como um e com outro, conforme os interesses de circunstância. Mas, para além dos interesses particulares de cada grupo detentor de meios de comunicação, o sistema tem interesses próprios num mercado concreto e real que tem regras que, sendo embora muito próprias, não deixam de ser regras de mercado.
Uma delas, talvez a mais importante, é a de que a notícia é, antes de tudo, uma mercadoria, que deve ser adequada a satisfazer as necessidades dos consumidores.
Para a produção dessa mercadoria associam-se múltiplos fatores. Mas um dos mais importantes é, sem dúvida, o da qualidade dos atores da vida que são alvo da notícias.
Os atores da vida real que são famosos dão muito melhores noticias do que os cidadãos anónimos que, por regra, não são objeto de notícia, mesmo que mordam o seu próprio cão.
O fenómeno não é novo, mas tem vindo a ganhar um sofisticação progressiva.
A primeira vítima, após o 25 de Abril de 1974, foi Edmundo Pedro. Um homem com um notável curriculum de luta contra o anterior regime, com mais de quinze anos nas prisões da ditadura, figura de topo do Partido Socialista, foi literalmente liquidado, com a conivência do seu próprio partido, após o lançamento na imprensa de notícias que o davam como personagem central de uma rede de contrabandistas.
Veio mais tarde a apurar-se que era tudo falso e que Edmundo Pedro, então administrador da RTP, limitava a sua ação ao cumprimento do dever cívico, que tinha assumido, de recolher as armas que os militares lhe haviam confiado para distribuir às hostes do Partido Socialista antes do 25 de Novembro.
As mais altas personalidades políticas do país tinha conhecimento desse facto e ninguém ousou falar a verdade.
Uns anos depois assistimos à liquidação de Duarte Lima. Uma fonte judiciária comprometida com o seu próprio partido colocou nas mãos de um jornalista de esquerda documentos que pareciam irrefutáveis para a prova de uma série de operações que implicavam movimentos irregulares de capitais e fuga ao fisco. O jornalista, de boa fé, publicou num jornal um conjunto de noticias que implicaram o fim político desse dirigente social-democrata.
Mais tarde tivemos o caso Casa Pia, que afetou terrivelmente o bom nome de Paulo Pedroso e que liquidou profissionalmente Carlos Cruz, uma das mais populares figuras da televisão portuguesa, no momento em que ele se preparava para coroar de glória e de fortuna o esforço que fez para a conquista por Portugal do Euro 2004.
Nenhum dos primeiros dois escândalos resultou em condenação para os acusados.
Edmundo Pedro, em vez de condenado foi absolvidos com louvores e, depois disso, muitos anos depois, como se se arrependesse da injustiça, o país tem feito a justiça de o reconhecer como um exemplo de político impoluto.
Duarte Lima não sofreu nenhuma condenação mas foi obrigado a fazer uma vida discreta, ofendido na sua honra e na sua imagem.
Paulo Pedroso, inocentado pelos tribunais superiores, tem procurado, sem nenhuma hipótese de sucesso, afirmar-se na luta política. Mas nunca ninguém lhe tirará o handicap que resulta do terrível envolvimento naquele estranho processo.
Carlos Cruz, se for julgado inocente, morrerá sem que a sua imagem seja reparada, porque é impossível reparar uma imagem tão marcada pela suspeita.
Que me lembre, houve apenas dois políticos, envolvidos em escândalos mediáticos, que compreenderam o que é a comunicação social. Um foi António Vitorino e outro foi Jorge Coelho.
António Vitorino foi acusado por um jornal de se ter furtado aos impostos numa operação de troca de uma propriedade, em termos que eram, na época, muito comuns e tolerados pelo fisco.
Desmentiu que tivesse fugido ao fisco e demitiu-se, porque percebeu que só o atacavam por ser ministro, residindo o problema nessa qualidade. Deixando de o ser, deixava de ser interessante para a comunicação social continuar o folhetim.
Jorge Coelho, quando alguns jornais suscitaram suspeitas relativamente ao seu ministério em matéria de negligência na conservação da ponte de Entre-os-Rios, foi mais longe e, antes que o acusassem, saiu do governo, usando o mesmo mecanismo de defesa.
As primeiras conclusões que estas observações importam são muito lineares.
Há uma relação permanente de tensão entre a comunicação social, o poder e a sociedade que conduz a que a relevância social que marca os factos que são notícia dependa, em alto grau, do poder dos protagonistas. O mesmo facto que seria notícia, durante dias e dias, se o ator principal é um agente do poder, deixa de o ser se ele deixar de sê-lo.
Dias Loureiro esteve no centro dos noticiários até se demitir do Conselho de Estado. Agora, apesar de lhe terem sido assacadas responsabilidades de milhões de contos, ninguém fala dele, como se já tivesse sido absolvido das acusações contra ele dirigidas.
No caso mediático mais recente, que envolve o nome de Armando Vara, ele foi cabeça de cartaz em todos os jornais e noticiários de televisão até ao dia em que se demitiu de vice-presidente do Banco Millenium. Depois disso ninguém terá interesse em atacá-lo e provavelmente entrará no esquecimento, porque deixou de estar numa cadeira de poder.
É notável o editorial de Pedro Santos Guerreiro no Jornal de Negócios de 4/11/2009:
«E ao fim de seis dias na fritadeira, Armando Vara pediu a suspensão do seu mandato no BCP. Sai pelo seu próprio pé. Depois de lhe terem posto um par de patins. Vara teve compreensão lenta: só percebeu ontem o que para todos era evidente há uma semana… Vara pode queixar-se do tribunal popular dos últimos dias. Da devassa da sua vida pela violação do segredo de justiça. Foi cilindrado, sem hipóteses de defesa, o que o próprio deixou agravar pela demissão tardia.»
Gostei especialmente da expressão «fritadeira» e da lembrança que ela nos traz do campo de concentração do Tarrafal; e não posso deixar de lhe associar a ideia, com que se fica depois da leitura do escrito, do gozo pessoal do jornalista relativamente à tortura a que aquele personagem foi sujeito.
Estamos, claramente, perante jogos de poder e este não é mais do que o gesto mimético de um vencedor, semelhante ao do outro soldado, que vimos há dias na televisão, a cumprir a missão histórica de disparar as duas rajadas de metralhadora que mataram o ditador Nicaolae Ceausescu e sua mulher Elena[1].
O sistema mediático constitui um poder autónomo, por relação ao poder político e ao poder judiciário, conluiando-se como um e com outro, conforme os interesses de circunstância. Mas, para além dos interesses particulares de cada grupo detentor de meios de comunicação, o sistema tem interesses próprios num mercado concreto e real que tem regras que, sendo embora muito próprias, não deixam de ser regras de mercado.
Uma delas, talvez a mais importante, é a de que a notícia é, antes de tudo, uma mercadoria, que deve ser adequada a satisfazer as necessidades dos consumidores.
Para a produção dessa mercadoria associam-se múltiplos fatores. Mas um dos mais importantes é, sem dúvida, o da qualidade dos atores da vida que são alvo da notícias.
Os atores da vida real que são famosos dão muito melhores noticias do que os cidadãos anónimos que, por regra, não são objeto de notícia, mesmo que mordam o seu próprio cão.
[1] Quem não viu pode consultar o vídeo em http://www.youtube.com/watch?v=XKyO2G8kGM0