segunda-feira, fevereiro 11, 2013

Sobre o serviço público de televisão


Um  texto que escrevi em 1998 sob o título de Actualidade do Seviço Público de Televisão
 
(...)

            A questão do serviço público de televisão tem de reanalisar-se à luz de novos valores e de novos princípios, no quadro de uma – também nova – matriz para a actividade televisiva.

            A Constituição da República garante, no seu artº 38º,5 “a existência e o funcionamento de um serviço público de televisão”, não impondo, porém, nenhumas balizas à organização e funcionamento do mesmo. Certo é que, em termos sistemáticos, se insere essa garantia no quadro da da liberdade de imprensa, subespécie da (mais ampla) liberdade de expressão e informação a que  alude o artº 37º da Lei Fundamental.

            Muito mudaram as realidades – e a própria amplitude do conceito maior de liberdade de expressão e informação - nomeadamente em razão da evolução das novas tecnologias e da alteração do próprio sistema de comunicação. E, por isso mesmo, nos parece indispensável reanalisar a questão do serviço público de televisão num novo contexto e numa visão prospectiva, que tome em consideração, pelo menos, o que já é perscrutável na base dos conhecimentos que hoje temos relativamente à evolução do sistema nos próximos quinze anos.

            A primeira afirmação que importa fazer é que não faz sentido estabelecer ou manter um serviço público de televisão com o quase-exclusivo interesse de resolver os problemas próprios da empresa pública, herdada da época da guerra fria e adaptada, melhor ou pior às realidades do mercado, mas sempre com o estigma de reserva pública da capacidade de comunicação.

            Fazia sentido uma tal perspectiva no quadro do monopólio e apenas como baia do próprio exercício da actividade  televisiva, naquele sentido clássico de limitação aos abusos da posição dominante. Faltando, por desnecessários, mecanismos de regulação próprios das situações de mercado aberto e faltando a própria concorrência, com o que tem de imposição em termos de qualidade e actualidade, o serviço público aparecia, em tal quadro, como um garante do fornecimento de produtos televisivos a  todo o país e – porque quem paga pode – também um garante de qualidade/actualidade, que o monopolista, não fossem as obrigações do serviço público, podia perfeitamente deixar à margem.

            O novo quadro é completamente diverso:

·         Temos  quatro canais hertzianos terrestres, ocupando os cinquenta canais radioeléctricos das faixas I e III de VHF e IV e V de UHF mas temos outrossim, aí à porta, a televisão digital, com possibilidades já quase inimagináveis de multiplicação de canais.

·         Temos a possibilidade de implantar novas estações como recurso ao sistema MMDS[1], ocupando a faixa dos 40,2 a 43,5 GHz, apontando-se o número de 125 canais com a tecnologia analógica e de várias centenas com a tecnologia digital.

·         Temos o cabo e a já (quase) ilimitada  possibilidade de multiplicação de emissões em sistema de TV on demand ou, com ainda maior facilidade, no sistema Internet TV, que permite, ao menos em termos teóricos, que cada cidadão tenha a sua própria estação de televisão.

·         Temos a televisão por satélite, com uma enormíssima capacidade de difusão, tanto sobre o espaço territorial português como sobre todos os espaços que se elejam como importantes para a difusão de mensagens a partir de Portugal.

A exigência do serviço público de televisão não se faz hoje como contrapartida de um direito dos cidadãos à informação e à cultura naquele  sentido de direito à acessibilidade que marcou, antes, a reivindicação de energia eléctrica e de telefones para todos. Essa garantia de acessibilidade deverá ser, em todos os casos, um simples pressuposto ou, se quisermos uma  contrapartida  indispensável do próprio licenciamento das estações.

Não faz, tampouco, sentido que numa sociedade de mercado levada às últimas consequências como é a sociedade de informação se encare o serviço público de televisão como uma espécie de tónico para uma “televisão de referência”, em que o referente reside essencialmente na criação de mecanismos de concorrência  desleal, por via dos subsídios à produção de uma em desfavor das demais.

Tem esse sistema, para além do mais, dois defeitos: o de viciar a própria lógica do share na medida em que implicitamente procura desviar clientes para a estação subsidiada[2] e o de viciar a concorrência no plano da gestão da produtividade interna das empresas. Parece-nos que, por mais que o peso do passado, prolongue as excepções, esta realidade não resistirá por muito tempo às exigências do direito comunitário.

Não faria hoje nenhum sentido que o Estado colocasse todas as suas mensagens e todos os seus anúncios num único jornal diário. Não faz hoje nenhum sentido que  o Estado vectorize todos os recursos destinados à produção e difusão televisiva para uma única estação de televisão.

A ideia de televisão de referência colada a um determinado canal é, em si mesma, uma violência e uma agressão ao direito de escolha dos cidadãos, vertente de primeiro plano do direito a ser informado. O que ela tem de catálise do mimético é insuportável nos nossos dias.

Não pretendo dizer com isto que a ideia de um serviço público de televisão está definitivamente ultrapassada, apesar da Constituição. Nada disso…

A observação da nossa realidade  televisiva dos últimos cinco anos mostra à evidência duas coisas:

·         Primeiro, que a concorrência introduziu uma série de defeitos, que marcam igualmente a estação pública e as estações  privadas, de nada valendo à qualidade da primeira os benefícios da concessão do serviço público.

·         Segundo, que os maiores problemas que afectam o nossos sistema de comunicação televisivo são a excessiva unilateralidade e a falta de qualidade de alguns conteúdos, preparados dentro das limitações orçamentais, muitas vezes, claramente, para tapar buracos.

A observação desta realidade e a  emergência da sociedade de informação justificam  que se encare o serviço público de televisão numa outra perspectiva, aliás completamente inversa da que o marcou até agora.

O importante não é subsidiar o meio para que ele subsista em vista à realização de necessidades de participação passiva. Ter hoje um serviço público de televisão não é a mesma coisa que ter um exército ou um serviço de bombeiros.

O sistema de comunicação está aí, forte, a crescer e a ampliar-se em todas as frentes da própria globalização. O problema será, cada vez mais, ecológico; e aí fará, cada vez mais, sentido falar de conteúdos de referência em vez de televisão de referência e desviar a função do serviço público de televisão para o plano da nova indústria de conteúdos, de forma a marcar a montante – e no quadro de um mercado aberto – regras de qualidade que reduzam a probabilidade do telelixo.

O serviço público de televisão só faz sentido se encarado sob duas novas vertentes: de um lado na perspectiva do apoio à entrada de novas empresas e de produtores autónomos no sistema televisivo; de outro, como como base de lançamento de um sistema de qualidade no plano dos conteúdos.

A Constituição não garante apenas o direito de recepção, que, aliás está hoje plenamente assegurado. Garante também o direito de comunicação positivo, o direito de emissão, hoje de concretização muito difícil, porém cada vez mais essencial à afirmação das pessoas e das instituições.

É neste plano que a globalização acentua especiais exigências, irrealizáveis sem o apoio público, mas de cuja concretização podem beneficiar todo o sistema televisivo e toda a sociedade.

 

Lisboa, 24/3/98

Miguel Reis

Advogado, ex-membro da AACS

 

Nota – Este texto foi escrito para o Forum da Comunicação organizado pela AACS, muito antes do debate que agora se abriu sobre o Serviço Público e da entrevista de Pivot ao DN de 3/5/98. Não me parece que o Sr. Pivot  tenha razão quando diz que só é possível realizar programas culturas na televisão pública. A questão é bem outra: perguntem ao Emidio Rangel se ele se dispõe ou não a emitir uma “caldo de Cultura” à moda do Sr. Pivot desde que a conta seja paga pelo Estado…

 

 

 

 

 

 

 

 

           

 

 



[1]  Microwave Multipoint Distribution Systems. V. por todos relatório da Comissão de Reflexão sobre o Futuro da Televisão
[2]  Com as graves concorrências que isso tem no plano das vendas de publicidade