Um texto que escrevi em 1998 sob o título de Actualidade do Seviço Público de Televisão
A
questão do serviço público de televisão
tem de reanalisar-se à luz de novos valores e de novos princípios, no quadro de
uma – também nova – matriz para a actividade televisiva.
A
Constituição da República garante, no seu artº 38º,5 “a existência e o
funcionamento de um serviço público de televisão”, não impondo, porém, nenhumas
balizas à organização e funcionamento do mesmo. Certo é que, em termos
sistemáticos, se insere essa garantia no quadro da da liberdade de imprensa,
subespécie da (mais ampla) liberdade de expressão e informação a que alude o artº 37º da Lei Fundamental.
Muito
mudaram as realidades – e a própria amplitude do conceito maior de liberdade de
expressão e informação - nomeadamente em razão da evolução das novas
tecnologias e da alteração do próprio sistema de comunicação. E, por isso
mesmo, nos parece indispensável reanalisar a questão do serviço público de
televisão num novo contexto e numa visão prospectiva, que tome em consideração,
pelo menos, o que já é perscrutável na base dos conhecimentos que hoje temos
relativamente à evolução do sistema nos próximos quinze anos.
A
primeira afirmação que importa fazer é que não faz sentido estabelecer ou
manter um serviço público de televisão com o quase-exclusivo interesse de
resolver os problemas próprios da empresa pública, herdada da época da guerra
fria e adaptada, melhor ou pior às realidades do mercado, mas sempre com o
estigma de reserva pública da capacidade de comunicação.
Fazia
sentido uma tal perspectiva no quadro do monopólio e apenas como baia do
próprio exercício da actividade
televisiva, naquele sentido clássico de limitação aos abusos da posição
dominante. Faltando, por desnecessários, mecanismos de regulação próprios das
situações de mercado aberto e faltando a própria concorrência, com o que tem de
imposição em termos de qualidade e actualidade, o serviço público aparecia, em
tal quadro, como um garante do fornecimento de produtos televisivos a todo o país e – porque quem paga pode –
também um garante de qualidade/actualidade, que o monopolista, não fossem as
obrigações do serviço público, podia perfeitamente deixar à margem.
O novo
quadro é completamente diverso:
·
Temos quatro canais hertzianos terrestres, ocupando
os cinquenta canais radioeléctricos das faixas I e III de VHF e IV e V de UHF
mas temos outrossim, aí à porta, a televisão digital, com possibilidades já
quase inimagináveis de multiplicação de canais.
·
Temos a
possibilidade de implantar novas estações como recurso ao sistema MMDS[1],
ocupando a faixa dos 40,2 a 43,5 GHz, apontando-se o número de 125 canais com a
tecnologia analógica e de várias centenas com a tecnologia digital.
·
Temos o cabo e a já
(quase) ilimitada possibilidade de
multiplicação de emissões em sistema de TV
on demand ou, com ainda maior facilidade, no sistema Internet TV, que
permite, ao menos em termos teóricos, que cada cidadão tenha a sua própria
estação de televisão.
·
Temos a televisão
por satélite, com uma enormíssima capacidade de difusão, tanto sobre o espaço
territorial português como sobre todos os espaços que se elejam como
importantes para a difusão de mensagens a partir de Portugal.
A exigência do serviço público de televisão não se faz hoje como contrapartida de
um direito dos cidadãos à informação e à cultura naquele sentido de direito à acessibilidade que
marcou, antes, a reivindicação de energia eléctrica e de telefones para todos.
Essa garantia de acessibilidade deverá ser, em todos os casos, um simples
pressuposto ou, se quisermos uma contrapartida indispensável do próprio licenciamento das
estações.
Não faz, tampouco, sentido que numa
sociedade de mercado levada às últimas consequências como é a sociedade de
informação se encare o serviço público de
televisão como uma espécie de tónico para uma “televisão de referência”, em
que o referente reside essencialmente na criação de mecanismos de
concorrência desleal, por via dos
subsídios à produção de uma em desfavor das demais.
Tem esse sistema, para além do mais, dois
defeitos: o de viciar a própria lógica do share
na medida em que implicitamente procura desviar clientes para a estação
subsidiada[2] e o
de viciar a concorrência no plano da gestão da produtividade interna das
empresas. Parece-nos que, por mais que o peso do passado, prolongue as
excepções, esta realidade não resistirá por muito tempo às exigências do
direito comunitário.
Não faria hoje nenhum sentido que o Estado
colocasse todas as suas mensagens e todos os seus anúncios num único jornal
diário. Não faz hoje nenhum sentido que o Estado vectorize todos os recursos
destinados à produção e difusão televisiva para uma única estação de televisão.
A ideia de televisão de referência colada a um determinado canal é, em si
mesma, uma violência e uma agressão ao direito de escolha dos cidadãos,
vertente de primeiro plano do direito a ser informado. O que ela tem de
catálise do mimético é insuportável nos nossos dias.
Não pretendo dizer com isto que a ideia de
um serviço público de televisão está definitivamente
ultrapassada, apesar da Constituição. Nada disso…
A observação da nossa realidade televisiva dos últimos cinco anos mostra à
evidência duas coisas:
·
Primeiro, que a
concorrência introduziu uma série de defeitos, que marcam igualmente a estação
pública e as estações privadas, de nada
valendo à qualidade da primeira os benefícios da concessão do serviço público.
·
Segundo, que os
maiores problemas que afectam o nossos sistema de comunicação televisivo são a
excessiva unilateralidade e a falta de qualidade de alguns conteúdos,
preparados dentro das limitações orçamentais, muitas vezes, claramente, para
tapar buracos.
A observação desta realidade e a emergência da sociedade de informação
justificam que se encare o serviço público de televisão numa outra
perspectiva, aliás completamente inversa da que o marcou até agora.
O importante não é subsidiar o meio para que ele
subsista em vista à realização de necessidades de participação passiva. Ter
hoje um serviço público de televisão não é a mesma coisa que ter um exército ou
um serviço de bombeiros.
O sistema de comunicação está aí, forte, a crescer e
a ampliar-se em todas as frentes da própria globalização. O problema será, cada
vez mais, ecológico; e aí fará, cada vez mais, sentido falar de conteúdos de
referência em vez de televisão de referência e desviar a função do serviço
público de televisão para o plano da nova indústria de conteúdos, de forma a
marcar a montante – e no quadro de um mercado aberto – regras de qualidade que
reduzam a probabilidade do telelixo.
O serviço público de televisão só faz sentido se
encarado sob duas novas vertentes: de um lado na perspectiva do apoio à entrada
de novas empresas e de produtores autónomos no sistema televisivo; de outro,
como como base de lançamento de um sistema de qualidade no plano dos conteúdos.
A Constituição não garante apenas o direito de
recepção, que, aliás está hoje plenamente assegurado. Garante também o direito
de comunicação positivo, o direito de emissão, hoje de concretização muito
difícil, porém cada vez mais essencial à afirmação das pessoas e das
instituições.
É neste plano que a globalização acentua especiais
exigências, irrealizáveis sem o apoio público, mas de cuja concretização podem
beneficiar todo o sistema televisivo e toda a sociedade.
Lisboa, 24/3/98
Miguel Reis
Advogado,
ex-membro da AACS
Nota – Este texto foi escrito para o Forum da Comunicação organizado
pela AACS, muito antes do debate que agora se abriu sobre o Serviço Público e
da entrevista de Pivot ao DN de 3/5/98. Não me parece que o Sr. Pivot tenha razão quando diz que só é possível
realizar programas culturas na televisão pública. A questão é bem outra:
perguntem ao Emidio Rangel se ele se dispõe ou não a emitir uma “caldo de
Cultura” à moda do Sr. Pivot desde que a conta seja paga pelo Estado…