XIII Governo Constitucional
António Guterres
Lisboa, 10/12/95
Exmº Senhor Primeiro Ministro:
Ouvi
com muito interesse o que Vª Exª teve a
oportunidade de afirmar, nas suas primeiras intervenções, no tocante ao
relacionamento do País com as
comunidades portuguesas espalhadas pelo Mundo. Acredito e desejo que esteja no
seu espírito operar uma profunda mudança nessa matéria e, por isso mesmo, não
posso deixar de lhe dar nota da minha experiência pessoal no que se refere a
alguns dos mais vergonhosos aspectos desse relacionamento.
Mercê de diversos factores (dos
quais destaco velhos relacionamentos dos meus tempos de jornalista e a proximidade
do meu escritório por relação às instalações da Conservatória dos Registos
Centrais) acompanho, com os meus Colegas da sociedade profissional em epígrafe,
um número assinalável de processos na área do registo civil e do contencioso de
nacionalidade, em representação, na quase totalidade dos casos, de cidadãos
portugueses residentes no estrangeiro.
Essa experiência permite-me afirmar-lhe, de forma imediata, segura, e
sem rodeios, que se vêm acumulando irregularidades e omissões gravíssimas, que prejudicam,
nalguns casos de forma insanável, os direitos e interesses dos portugueses
residentes no estrangeiro e que causam, em muitas situações, grandes prejuízos
ao País.
Da
minha experiência resulta, em primeiro lugar, a convicção de que a maioria dos
portugueses residentes nos estrangeiro tem uma situação irregular em matéria de
registo civil, mesmo que os cidadãos se tenham esforçado por operar a
integração dos actos sujeitos a registo no registo civil português, por via das
repartições consulares.
Não
conheço nenhuma estatística que nos forneça números dos actos de registo civil requeridos anualmente
nos consulados de Portugal espalhados pelo Mundo. Como não conheço nenhuma
estatística que nos permita ter uma noção dos que (desses) são integrados na
Conservatória dos Registos Centrais. Tenho, porém, a convicção de que a maioria
dos actos de registo requeridos nos consulados portugueses não é integrada no
registo central, desde que os interessados o não reclamem.
Em
cerca de noventa por cento dos casos em que tenho procurado averiguar se um
determinado registo, processado num consulado, foi transcrito ou integrado na
Conservatória dos Registos Centrais, a conclusão é a de que o não foi, mesmo
que o acto registando já tenha sido processado há muitos anos. Só para avançar
um exemplo, ainda no corrente mês constatei a existência de dois assentos de
casamento processados pelo Consulado de Portugal em S. Paulo no ano de 1978,
que não tinham ingressado no registo central.
Nas
comunidades portuguesas espalhadas pelo Mundo está instalada a ideia de que os
consulados funcionam mal e arrastam por tempo indeterminado o envio dos
documentos para Lisboa. Parece-me uma
ideia errada, cuja parametrização
importa apurar com rigor.
É
verdade que há insuficiências e atrasos no funcionamento dos consulados, mas a
análise, que a experiência me tem permitido fazer, conduz-me à conclusão de que
o grosso dos atrasos ocorre em Lisboa e não no estrangeiro. Tomando como base de amostragem um lote de
uma centena de processos para inscrição de nascimento, conclui que o tempo
médio despendido na repartição consular que os instruiu foi de 29,5 dias,
quando o tempo de espera, todavia sem conclusão, na Conservatória dos Registos
Centrais, foi superior a 400 dias.
A
minha convicção de que a larga maioria dos registos requeridos por portugueses
nos consulados espalhados pelo Mundo não é processada na Conservatória dos
Registos Centrais é confirmada por funcionários desta repartição. Não posso,
por razões óbvias, identificar esses
funcionários; mas não posso, tampouco, esconder a informação, por alguns
prestada, de que grande volume dos registos consulares a transcrever ou a
integrar é, pura e simplesmente, encaixotado, na expectativa de que o cliente
não apareça a reclamá-los. Haverá na
Conservatória caixotes e caixotes com milhares e milhares de documentos por
processar, vindos dos consulados e embaixadas portuguesas de todo o Mundo.
É simplesmente chocante.
Em
finais de Novembro, o País assistiu atónito à notícia de que um cadáver
aguardava enterramento há cinco dias, porque o coração do seu dono parou em
cima da Ponte sobre o Tejo e duas conservatórias de registo civil se declararam
incompetentes para lavrar o registo do óbito. As filhas do defunto, emigradas
em França, vieram e tiveram de partir antes do enterro, porque, com uma
insensibilidade incrível, a burocracia do registo civil não foi capaz de
ultrapassar as suas dificuldades internas. É uma notícia obviamente chocante,
mas não passa de um sintoma...
Para
o cidadão comum, para além do chocante do tétrico quadro, fica a ideia, não
menos chocante, de que a doença
burocrática se está a agravar no País.
Mal
vai um País quando não é capaz de registar o nascimento e a morte dos cidadãos
que lhe dão corpo. Não há País sem pessoas e não há pessoas sem personalidade,
naquele sentido de virtualidade de ser sujeito de direitos e obrigações.
A personalidade jurídica começa com o
nascimento completo e com vida e termina com a morte, servindo o registo civil
para dar publicidade aos factos que, de forma mais relevante, a marcam. Nesse
sentido, o registo civil é, antes de
tudo, registo do nascimento que marca o inicio da personalidade jurídica e, no
fim de tudo, registo da morte que lhe põe termo.
Daí
que, do meu ponto de vista, o registo civil tenha de ter uma vocação de
instantaneidade, no sentido de que o acto sujeito a registo obrigatório deve
ser lavrado no preciso momento da declaração que o fundamenta, sob pena de se
ofender o direito à identidade dos sujeitos, visto na perspectiva de direito
à historicidade pessoal de que o registo é o tombo.
O
morto é morto a partir do momento em que morreu e não deve ser dado como vivo.
Como o casado é casado a partir do momento em que casou e não deve ser dado como solteiro; e o
nascido é nascido a partir do momento em que nasceu e não pode continuar a ser havido
como nascituro ou nada.
Todos estamos habituados a que não
haja problemas em matéria de registo civil. Todos estamos habituados a que não se nos suscitem problemas quando
queremos registar um nascimento, organizar um processo de casamento ou declarar
um óbito. Todos temos uma experiência e
uma boa ideia do registo civil, em contraste com o mau sintoma da notícia acima
referida. E quando digo todos refiro-me mesmo a todos: aos portugueses
residentes no País e aos residentes no estrangeiro. Por isso se me afigura ainda mais chocante o
tratamento que vem sendo dado aos nossos compatriotas residentes fora de
Portugal.
Se
procederam a inscrição do nascimentos dos seus filhos num consulado de
Portugal, eles estão convencidos de que os filhos estão registados; se pediram
a transcrição do casamento que celebraram junto de repartição estrangeira,
estão convencidos de que estão casados; se peticionaram no consulado respectivo
o registo de um óbito que deva tomar assento no registo civil português, ficam
convencidos de que o óbito é registado.
Essa
convicção resulta da ideia de que o registo civil é simples e funciona bem,
sendo o registo quase consequência automática da declaração. A verdade é que
não é assim... e que as consequências são graves, a todos os títulos e em todos
os planos.
O problema está em que os factos sujeitos a
registo civil obrigatório só podem ser invocados - e só produzem efeitos na
ordem jurídica portuguesa - depois de inscritos nos órgãos privativos do
registo civil português.
Como é do conhecimento comum,
Portugal adoptou, como aliás muitos
outros estados, o princípio da
centralização do registo de factos
respeitantes aos seus nacionais que ocorram no estrangeiro. Tal centralização
opera-se na Conservatória dos Registos Centrais, em Lisboa, mesmo que o registo
do nascimento do cidadão em causa esteja lavrado numa qualquer conservatória de
província.
Os
agentes diplomáticos e consulares portugueses no estrangeiro podem desempenhar,
a título excepcional, funções de registo civil, de forma equiparada às dos
comissários de marinha dos navios do Estado, dos capitães, mestres ou patrões
nas embarcações particulares e dos comandantes das aeronaves portuguesas. Mas
os actos por eles praticados só são eficazes depois de transcritos nos livros
da Conservatória dos Registos Centrais, à qual devem ser enviados, no prazo de
quinze dias, os duplicados dos assentos. Ou seja: os assentos consulares não
valem nada, ou pouco valem. Mas valem ainda menos do que poderia parecer,
porque chegados à Conservatória dos Registos Centrais não são processados.
Actualmente
estão sujeitos a registo civil obrigatório o nascimento, a filiação, a adopção,
o casamento, as convenções antenupciais e as alterações do regime de bens, a
regulação do exercício do poder paternal, sua cessação, alteração, inibição ou suspensão e as providências
limitativas desse poder, a interdição ou inabilitação definitivas, a tutela de
menores e interditos, a administração dos bens dos menores e a curadoria de
inabilitados, a curadoria provisória ou definitiva de ausentes e a morte
presumida, o óbito e quaisquer factos que determinem a modificação ou extinção
dos factos indicados (artº 1º, 1 do Código do Registo Civil). Trata-se de
uma amplíssima panóplia de actos e incidentes com a maior importância na
vida das pessoas, que o Estado não pode abster-se de tratar com a dignidade que
os seus cidadãos merecem.
Temos milhares, se não milhões de
portugueses que existem para os respectivos consulados mas que não existem para
Portugal, porque não foram integrados no
registo central os actos registados nos consulados.
Temos
milhares, se não milhões de portugueses que continuam solteiros, porque
não foi transcrito o seu casamento.
Temos
milhares se não milhões de portugueses que sendo viúvos continuam casados,
porque não foi transcrito o óbito dos respectivos cônjuges.
Portugal
está a discriminar de forma grosseira os seus nacionais residentes noutros
estados, restringindo-lhe, de forma gravíssima, os direitos à identidade pessoal e à cidadania, que a Constituição garante no seu artigo 26º.
Como
advogado vejo-me confrontado diariamente com situações gravíssimas nesse plano.
São situações que me chocam como jurista
mas que me ofendem como cidadão e que
nos devem envergonhar a todos.
Para
além da barbaridade da não integração dos registos consulares, que exige uma
pronta tomada de posição do Governo, assinalo que o Estado não cumpre as suas
próprias leis em matéria de nacionalidade, ofendendo os legítimos direitos e
expectativas de muitos cidadãos que são portugueses e se sentem portugueses,
mas a quem o acesso à nacionalidade é negado, na prática, por omissão ou por
arrastamento.
Não me refiro sequer às situações de
aquisição de nacionalidade, pelo casamento ou por naturalização, embora mesmo a
esse respeito muito houvesse que dizer. Reporto-me tão só ao que se passa no
plano da atribuição da nacionalidade portuguesa aos filhos de pai ou mãe
portuguesa. São pessoas como os
seus filhos ou como os meus filhos, que têm o direito de ver reconhecida a
nacionalidade portuguesa como os nossos filhos o viram.
A
actual Lei da Nacionalidade (Lei nº 37/81, de 3 de Outubro) veio estabelecer no
seu artº 1º, 1, al b) que são
portugueses de origem “os filhos de pai português ou mãe
portuguesa nascidos no estrangeiro se declararem que querem ser portugueses ou
inscreverem o seu nascimento do registo civil português”.
A
mesma lei estabelece no seu artº 16º que “as declarações de que dependem a
atribuição, a aquisição ou a perda da nacionalidade portuguesa devem constar do
registo central da nacionalidade, a cargo da Conservatória dos Registos
Centrais”.
Por
sua vez, o artº 6º 1 al. a) do
Regulamento da Nacionalidade, aprovado pelo DL nº 322/82, de 12 de Agosto, estabelece que os
filhos de pai português ou de mãe portuguesa nascidos no estrangeiro “que pretendem que lhes seja atribuída a
nacionalidade portuguesa devem manifestar a vontade de serem portugueses por
uma das seguintes formas:
a) Declarar na Conservatória dos
Registos Centrais que querem ser portugueses;
b) Inscrever o nascimento nos
serviços consulares portugueses da área da sua naturalidade ou na Conservatória
dos Registos Centrais, mediante declaração prestada pelos próprios sendo
capazes ou pelos seus legais representantes, sendo incapazes”.
Diz o nº 2 da mesma
disposição que “a declaração ou o pedido de inscrição atributiva da
nacionalidade deve ser instruído com prova da nacionalidade portuguesa de um
dos progenitores”.
Na hipótese de se pretender
processar a aquisição de nacionalidade
por via de inscrição do nascimento há que instaurar processo de autorização
para inscrição tardia de nascimento se o requerente tiver mais de 14 anos. Se a
via escolhida for a de prestação de declaração para a atribuição de
nacionalidade, então é tomada a declaração e transcrito o registo estrangeiro
do nascimento (artº 8º,3 do Regulamento).
Tudo
parece extremamente simples e claro. Mas tudo é complicado pela burocracia da
Conservatória dos Registos Centrais.
Perante
a má experiência dos registos consulares, muitos portugueses procuram ver
reconhecida a nacionalidade por via da declaração a prestar, directamente ou
por procurador, na Conservatória dos Registos Centrais. Porém, embora essa via esteja garantida pela
lei, a Conservatória dificulta quanto pode o seu uso.
Se os interessados intentarem a
atribuição da nacionalidade portuguesa por via da inscrição do seu nascimento
na Conservatória dos Registos Centrais, esta repartição exige-lhe que apresente
duas testemunhas, para confirmar a identidade e a residência do requerente. As
testemunhas não vêm, naturalmente, dos Estados Unidos, do Brasil ou da
Austrália e a Conservatória sabe isso perfeitamente... Nas mais das vezes são
testemunhas profissionais, envolvidas em participações de procuradoria
clandestina.
Se
o interessado pretender ver reconhecida a nacionalidade portuguesa por via da
declaração a que se refere o artº 1º, 1,
al. b) da Lei da Nacionalidade, o que acontece é que lhe tomam a declaração mas
não lhe fazem nem o registo de atribuição da nacionalidade nem o registo do
nascimento, este por transcrição do registo de nascimento estrangeiro. Ainda no
mês passado diligenciei no sentido de obter a atribuição da nacionalidade
portuguesa a um jovem de vinte e poucos anos, nascido no Brasil, filho de um
português natural de Mira. Esse jovem, de nome Ricardo Alfarelos, conseguiu
uma bolsa de estudos no Reino Unido, válida apenas para cidadãos da União Europeia. Chegou em Junho a Portugal,
porque lhe asseguraram, no Brasil, que aqui conseguiria registar em poucos dias
a sua qualidade de português. O cidadão conseguiu fazer a declaração para
atribuição da nacionalidade em 4/12/95, mas não sabe quando se processará o
respectivo registo.
Os
serviços da Conservatória dos Registos Centrais respondem sistematicamente, com
a maior desfaçatez e com o maior desrespeito pelos direitos dos cidadãos que,
posteriormente haverá de fazer-se uma marcação de tais registos... É
absolutamente chocante, quando é certo que a Conservatória só ganharia com
a realização de tais registos em simultâneo: os elementos necessários para
a declaração e para os registos são os mesmos e a conferência dos documentos
far-se-ia de uma única vez, acrescendo que, com um vulgar processador de
texto não demorariam esses registos mais
do que uns minutos.
O
mau funcionamento da Conservatória dos Registos Centrais ultrapassa todos os
limites do imaginável. Incapazes de organizar os serviços em termos que
permitam satisfazer minimamente os direitos e interesses dos utentes, os seus
responsáveis repartem-se entre a opção da dificuldade que
estabeleceram como princípio e a opção da facilidade que
ergueram como excepção.
A primeira regra aponta para que as exigências - como meio de dificultar -
ultrapassem o legalmente admissível. Apesar do principio da oficiosidade em
matéria de registo civil, a Conservatória dos Registos Centrais não procede ao
trato sucessivo das situações sujeitas e registo, de forma a que todos os
registos relativos a uma pessoa se possam processar em simultâneo. E assim, se
a pessoa A, filha de um cidadão português quer proceder ao registo do seu
nascimento, só aceita que tal registo se processe depois de transcrito o
casamento dos progenitores, ainda que o declarante junto da autoridade estrangeira
haja sido o progenitor português. Isto pode demorar (e demora normalmente)
meses... Mas mais grave é ainda que se não aceite transcrever, no momento do
registo do nascimento, os actos sujeitos a registo que se tenham processado
noutros fori. Temos, por essa via, por exemplo, pessoas que
são casadas transformadas em solteiras, quiçá com importantes implicações no
plano do direito de família e do direito sucessório.
A
segunda regra é a chamada regra
do fax. Sem nenhum fundamento legal, sem nenhum critério e sem nenhum
regulamento, na base de considerações
discricionárias sempre desconhecidas, o Conservador estabelece as prioridades,
conforme os pedidos que lhe forem sendo feitos por telefax.
É
por demais óbvio que um sistema de prioridades sem critérios legais
pré-definidos prejudica os demais cidadãos com processos pendentes, os quais
são preteridos.
Tive
a oportunidade de denunciar essa situação numa petição dirigida ao Sr. Provedor
de Justiça em meados de 1994, que deu origem ao processo que pende
nos respectivos serviços com o nº
R-1752/94. O jornal “Tal & Qual” tornou pública a minha denúncia e a
Direcção Geral dos Registos e Notariado ordenou a abertura de um inquérito,
cujos resultados desconheço. Pende, por outro lado, na Polícia Judiciária um
processo de inquérito em que se investiga a prática de procuradoria clandestina
e a hipótese de haver situações de corrupção relacionada com este tipo de
processos.
A
verdade é que a situação se agravou nos últimos tempos. Entre os meus
constituintes há pessoas que prestaram há mais de seis meses declaração para
atribuição da nacionalidade portuguesa e que não viram ainda registada nem a
nacionalidade nem o nascimento. Em contrapartida, tenho indicação de que há
processos que deram entrada na Conservatória muito depois e que já se encontram
concluídos.
Este
quadro potencia a intervenção de pessoas sem escrúpulos que trocam as
dificuldades pelo pagamento de elevados montantes. Há mafias organizadas de
procuradores clandestinos que cobram aos nossos concidadãos espalhados pelo
Mundo valores que ultrapassam tudo quanto é decente e razoável. Essas mafias
são implicitamente protegidas pela Conservatória dos Registos Centrais, onde
intervêm de forma regular e sistemática,
como procuradores regulares, indivíduos que, não sendo advogados ou
solicitadores, não podem fazer procuradoria com carácter regular. Apensam tais “procuradores” as referidas
“testemunhas”, também elas mais ou menos
profissionais, tudo em termos que ajudam a justificar as dificuldades e
as contas.
Portugal
não pode pretender ter, de uma lado, uma política que privilegia a ligação à
Pátria de milhões de portugueses espalhados pelo Mundo e, de outro lado,
impedir esses portugueses de titular o seu direito mais essencial: o direito à
identidade, de que a nacionalidade é integrante.
Parece-me
que a Conservatória dos Registos Centrais está a ir “além da chinela”, ao criar
as dificuldades que vem criando ao registo dos cidadãos portugueses nascidos no
estrangeiro, como se lhe incumbisse decidir quem deve ser português e quem não
deve.
Não
sou nem nunca fui um nostálgico do Império, mas não apago a alma quando em
qualquer parte do Mundo, nas mais inesperadas situações e nos mais diversos
enquadramentos ouço falar português ou ouço expressões de amor a esta terra.
Sensibilizou-me ouvir de Leopoldo Senghor, nas
duas ou três vezes que com ele falei, a força com que falava das suas
raízes lusas, em jeito de quem invoca uma riqueza que não se quer largar.
Penso que a chamada cidadania
europeia é, ao menos por enquanto, uma
ficção administrativa (em muito idêntica à efémera cidadania soviética) que não
pode servir de pretexto para
liquidar a cidadania portuguesa
dos filhos dos emigrantes lusos. De qualquer modo, a própria cidadania europeia
só ganhará com esta, de apport tão polifacetado.
É
hoje claro que, no quadro da UE se acentuam as pressões no sentido de forçar os
estados de grande emigração a adoptar uma lógica de jus
soli para restringir o acesso dos descendentes dos seus nacionais à
cidadania europeia, decorrente da cidadania dos estados membros. É sabido que essas pressões vêm,
paradoxalmente, de países em que releva essencialmente o jus
sanguinis para o reconhecimento dos respectivos nacionais.
Parece-me que a questão da nacionalidade
é daquelas em que Portugal não pode
fazer cedências. Nós temos muito mais a ver com os familiares que todos
temos, nascidos no estrangeiro nas duas últimas gerações, do que com os filhos dos estrangeiros que, sem
qualquer afinidade cultural, aqui se vão fixando.
Seria
criminoso que, para resolver o problema do mau funcionamento dos Registos
Centrais, se adoptasse a via da
restrição ao acesso à nacionalidade, que já é invocada, em jeito de previsão,
para justificar o atraso e o desleixo.
A
integração de Portugal na União Europeia tem a maior importância para as
comunidades portuguesas espalhadas pela África, pelas Américas e pela Oceânia.
Há milhares de luso-descendentes para quem a UE abre novas perspectivas, nos
mais diversos planos. São estudantes que aproveitando a cidadania da União
podem estudar em qualquer dos países que a compõem; são empresários que, com o
mesmo quadro, podem investir ou comerciar como portugueses e europeus; são,
simplesmente, cidadãos que querem regressar às origens, depois de duas gerações
de sofrimento migratório, e aqui terminar, em paz, os seus dias ou aplicar, com
serenidade, a fortuna.
Penso
que a emigração não pode interessar ao
País apenas como gerador de invisíveis correntes. O que ela tem de mais
importante, mesmo no plano económico, é a sua dimensão humana. E dizer isto não significa, de modo algum,
apontar uma política com perspectivas deficitárias. Felizmente, nos dias que
correm, o interesse dos luso
descendentes em ver reconhecida a nacionalidade portuguesa tem mais a ver com
prosperidade do que com penúria. Nas mais das vezes, os que procuram o
reconhecimento da nacionalidade portuguesa,
são os que daqui partiram e se instalaram pobres em terceiros países
onde alcançaram o sucesso e que querem agora fazer investimentos em Portugal ou
na Europa, a partir de Portugal.
Urge
pôr termo, com a maior urgência, à escandalosa situação que vivemos nos
enunciados domínios. Penso que a gravidade da situação justifica que Vª Exª
promova um inquérito ao funcionamento da Conservatória dos Registos Centrais e
que se adoptem de imediato medidas adequadas a reparar os seus vícios mais
graves.
Com
muita tolerância, não é admissível que um registo requerido na Conservatória
dos Registos Centrais possa demorar mais de dez dias a ser processado. Não é
admissível que a integração dos actos de registo requeridos nas repartições
consulares demore anos e anos.
Todo
este estado de coisas se pode alterar, de um dia para o outro, com os meios
disponíveis, sem necessidade de aumentar os custos. Basta, apenas, que se faça
um pequeno esforço de organização e que se definam novos métodos de trabalho,
adequados a evitar duplicações de esforços e a reduzir o número de eventos
inúteis.
O
que parece claro, para todos os que trabalham com a Conservatória dos Registos
Centrais, é que não se irá a lado nenhum com a actual equipa dirigente, pela
simples razão de que ela não mostra a mínima abertura à inovação e ao progresso
e insiste em justificar com dificuldades
adicionais a sua efectiva incapacidade.
A este propósito, sem entrar em maiores detalhes, refiro-lhe apenas que esta
repartição, incumbida pela lei de proceder a todos os registos de factos
relativos a portugueses ocorridos no estrangeiro... desliga o fax entre as
17h00 e as 9h00.
Cumpro,
ao entregar-lhe esta exposição, um dever cívico. Mas, ao mesmo tempo, arrisco
os meus actos profissionais e os dos meus Colegas à represália, que aliás já
vimos sentido há meses, o que sendo grave directamente o é ainda mais
indirectamente, na medida em que afecta os direitos e interesses daqueles que
representamos.
Esta sociedade de advogados trata de
questões de registo civil e de contencioso de nacionalidade que lhe são
colocadas por gabinetes de advogados de todo o Mundo, procurando desenvolver o
seu trabalho com honorários módicos, fixados numa tabela válida para todo o
planeta. Os valores dessa tabela - só possíveis com uma boa gestão e com o
recurso às novas tecnologias da comunicação e do tratamento da informação - são
muito inferiores (chegam a ser de 1/20) aos que são cobrados por procuradores
clandestinos para a promoção de actos idênticos, o que nos têm valido grandes
críticas. Sentir-nos-íamos extremamente desiludidos com o País que temos se,
eventualmente, tivéssemos de concluir amanhã que as dificuldades que nos são
criadas derivam do facto de ofendermos interesses económicos que se jogam nesta
área.
Espero
que Vª Exª mande adoptar as providências
adequadas a reparar as situações denunciadas. Disponibilizo-me, desde já, para
prestar os esclarecimentos adicionais que me queiram solicitar e para cooperar com as entidades competentes
com vista a encontrar soluções que permitam pôr termo a esta vergonhosa
situação.
Os
meus mais respeitosos cumprimentos
Miguel Reis