sexta-feira, dezembro 30, 2022

Uma carta a Guterres em 1995

 

 

XIII Governo Constitucional

António Guterres

 

 

Lisboa,  10/12/95

                                              

 

 

Exmº Senhor Primeiro Ministro:

 

         Ouvi com muito interesse o que  Vª Exª teve a oportunidade de afirmar, nas suas primeiras intervenções, no tocante ao relacionamento do País  com as comunidades portuguesas espalhadas pelo Mundo. Acredito e desejo que esteja no seu espírito operar uma profunda mudança nessa matéria e, por isso mesmo, não posso deixar de lhe dar nota da minha experiência pessoal no que se refere a alguns dos mais vergonhosos aspectos desse relacionamento.

            Mercê de diversos factores (dos quais destaco velhos relacionamentos dos meus tempos de jornalista e a proximidade do meu escritório por relação às instalações da Conservatória dos Registos Centrais) acompanho, com os meus Colegas da sociedade profissional em epígrafe, um número assinalável de processos na área do registo civil e do contencioso de nacionalidade, em representação, na quase totalidade dos casos, de cidadãos portugueses residentes no estrangeiro.  Essa experiência permite-me afirmar-lhe, de forma imediata, segura, e sem rodeios, que se vêm acumulando irregularidades e omissões gravíssimas, que prejudicam, nalguns casos de forma insanável, os direitos e interesses dos portugueses residentes no estrangeiro e que causam, em muitas situações, grandes prejuízos ao País.

         Da minha experiência resulta, em primeiro lugar, a convicção de que a maioria dos portugueses residentes nos estrangeiro tem uma situação irregular em matéria de registo civil, mesmo que os cidadãos se tenham esforçado por operar a integração dos actos sujeitos a registo no registo civil português, por via das repartições consulares.

         Não conheço nenhuma estatística que nos forneça números dos  actos de registo civil requeridos anualmente nos consulados de Portugal espalhados pelo Mundo. Como não conheço nenhuma estatística que nos permita ter uma noção dos que (desses) são integrados na Conservatória dos Registos Centrais. Tenho, porém, a convicção de que a maioria dos actos de registo requeridos nos consulados portugueses não é integrada no registo central, desde que os interessados o não reclamem.

         Em cerca de noventa por cento dos casos em que tenho procurado averiguar se um determinado registo, processado num consulado, foi transcrito ou integrado na Conservatória dos Registos Centrais, a conclusão é a de que o não foi, mesmo que o acto registando já tenha sido processado há muitos anos. Só para avançar um exemplo, ainda no corrente mês constatei a existência de dois assentos de casamento processados pelo Consulado de Portugal em S. Paulo no ano de 1978, que não tinham ingressado no registo central.

         Nas comunidades portuguesas espalhadas pelo Mundo está instalada a ideia de que os consulados funcionam mal e arrastam por tempo indeterminado o envio dos documentos para Lisboa.      Parece-me uma ideia errada, cuja  parametrização importa apurar com rigor.

         É verdade que há insuficiências e atrasos no funcionamento dos consulados, mas a análise, que a experiência me tem permitido fazer, conduz-me à conclusão de que o grosso dos atrasos ocorre em Lisboa e não no estrangeiro.  Tomando como base de amostragem um lote de uma centena de processos para inscrição de nascimento, conclui que o tempo médio despendido na repartição consular que os instruiu foi de 29,5 dias, quando o tempo de espera, todavia sem conclusão, na Conservatória dos Registos Centrais, foi superior a 400 dias.

         A minha convicção de que a larga maioria dos registos requeridos por portugueses nos consulados espalhados pelo Mundo não é processada na Conservatória dos Registos Centrais é confirmada por funcionários desta repartição. Não posso, por razões óbvias,  identificar esses funcionários; mas não posso, tampouco, esconder a informação, por alguns prestada, de que grande volume dos registos consulares a transcrever ou a integrar é, pura e simplesmente, encaixotado, na expectativa de que o cliente não apareça a reclamá-los.  Haverá na Conservatória caixotes e caixotes com milhares e milhares de documentos por processar, vindos dos consulados e embaixadas portuguesas de todo o Mundo.

            É simplesmente chocante.

         Em finais de Novembro, o País assistiu atónito à notícia de que um cadáver aguardava enterramento há cinco dias, porque o coração do seu dono parou em cima da Ponte sobre o Tejo e duas conservatórias de registo civil se declararam incompetentes para lavrar o registo do óbito. As filhas do defunto, emigradas em França, vieram e tiveram de partir antes do enterro, porque, com uma insensibilidade incrível, a burocracia do registo civil não foi capaz de ultrapassar as suas dificuldades internas. É uma notícia obviamente chocante, mas não passa de um sintoma...

         Para o cidadão comum, para além do chocante do tétrico quadro, fica a ideia, não menos chocante, de que a  doença burocrática se está a agravar  no País.

         Mal vai um País quando não é capaz de registar o nascimento e a morte dos cidadãos que lhe dão corpo. Não há País sem pessoas e não há pessoas sem personalidade, naquele sentido de virtualidade de ser sujeito de direitos e obrigações.

         A personalidade jurídica começa com o nascimento completo e com vida e termina com a morte, servindo o registo civil para dar publicidade aos factos que, de forma mais relevante, a marcam. Nesse sentido,  o registo civil é, antes de tudo, registo do nascimento que marca o inicio da personalidade jurídica e, no fim de tudo, registo da morte que lhe põe termo.

         Daí que, do meu ponto de vista, o registo civil tenha de ter uma vocação de instantaneidade, no sentido de que o acto sujeito a registo obrigatório deve ser lavrado no preciso momento da declaração que o fundamenta, sob pena de se ofender o direito  à identidade  dos sujeitos, visto na perspectiva de direito à historicidade pessoal de que o registo é o tombo.

         O morto é morto a partir do momento em que morreu e não deve ser dado como vivo. Como o casado é casado a partir do momento em que casou  e não deve ser dado como solteiro; e o nascido é nascido a partir do momento em que nasceu e não pode continuar a ser havido como nascituro ou nada.

            Todos estamos habituados a que não haja problemas em matéria de registo civil. Todos estamos habituados a  que não se nos suscitem problemas quando queremos registar um nascimento, organizar um processo de casamento ou declarar um óbito. Todos temos  uma experiência e uma boa ideia do registo civil, em contraste com o mau sintoma da notícia acima referida. E quando digo todos refiro-me mesmo a todos: aos portugueses residentes no País e aos residentes no estrangeiro.  Por isso se me afigura ainda mais chocante o tratamento que vem sendo dado aos nossos compatriotas residentes fora de Portugal.

         Se procederam a inscrição do nascimentos dos seus filhos num consulado de Portugal, eles estão convencidos de que os filhos estão registados; se pediram a transcrição do casamento que celebraram junto de repartição estrangeira, estão convencidos de que estão casados; se peticionaram no consulado respectivo o registo de um óbito que deva tomar assento no registo civil português, ficam convencidos de que o óbito é registado.

         Essa convicção resulta da ideia de que o registo civil é simples e funciona bem, sendo o registo quase consequência automática da declaração. A verdade é que não é assim... e que as consequências são graves, a todos os títulos e em todos os planos.

          O problema está em que os factos sujeitos a registo civil obrigatório só podem ser invocados - e só produzem efeitos na ordem jurídica portuguesa - depois de inscritos nos órgãos privativos do registo civil português.

         Como é do conhecimento comum, Portugal  adoptou, como aliás muitos outros estados,  o princípio da centralização do  registo de factos respeitantes aos seus nacionais que ocorram no estrangeiro. Tal centralização opera-se na Conservatória dos Registos Centrais, em Lisboa, mesmo que o registo do nascimento do cidadão em causa esteja lavrado numa qualquer conservatória de província.         

         Os agentes diplomáticos e consulares portugueses no estrangeiro podem desempenhar, a título excepcional, funções de registo civil, de forma equiparada às dos comissários de marinha dos navios do Estado, dos capitães, mestres ou patrões nas embarcações particulares e dos comandantes das aeronaves portuguesas. Mas os actos por eles praticados só são eficazes depois de transcritos nos livros da Conservatória dos Registos Centrais, à qual devem ser enviados, no prazo de quinze dias, os duplicados dos assentos. Ou seja: os assentos consulares não valem nada, ou pouco valem. Mas valem ainda menos do que poderia parecer, porque chegados à Conservatória dos Registos Centrais  não são processados.

         Actualmente estão sujeitos a registo civil obrigatório o nascimento, a filiação, a adopção, o casamento, as convenções antenupciais e as alterações do regime de bens, a regulação do exercício do poder paternal, sua cessação, alteração,  inibição ou suspensão e as providências limitativas desse poder, a interdição ou inabilitação definitivas, a tutela de menores e interditos, a administração dos bens dos menores e a curadoria de inabilitados, a curadoria provisória ou definitiva de ausentes e a morte presumida, o óbito e quaisquer factos que determinem a modificação ou extinção dos factos indicados (artº 1º, 1 do Código do Registo Civil).  Trata-se de  uma amplíssima panóplia de actos e incidentes com a maior importância na vida das pessoas, que o Estado não pode abster-se de tratar com a dignidade que os seus cidadãos merecem.

            Temos milhares, se não milhões de portugueses que existem para os respectivos consulados mas que não existem para Portugal, porque  não foram integrados no registo central os actos registados nos consulados.

         Temos milhares, se não milhões  de  portugueses que continuam solteiros, porque não foi transcrito o seu casamento.

         Temos milhares se não milhões de portugueses que sendo viúvos continuam casados, porque não foi transcrito o óbito dos respectivos cônjuges.

        

         Portugal está a discriminar de forma grosseira os seus nacionais residentes noutros estados, restringindo-lhe, de forma gravíssima, os direitos  à identidade pessoal e à cidadania,  que a Constituição garante no seu artigo 26º.

         Como advogado vejo-me confrontado diariamente com situações gravíssimas nesse plano. São situações que  me chocam como jurista mas que  me ofendem como cidadão e que nos devem envergonhar a todos.

         Para além da barbaridade da não integração dos registos consulares, que exige uma pronta tomada de posição do Governo, assinalo que o Estado não cumpre as suas próprias leis em matéria de nacionalidade, ofendendo os legítimos direitos e expectativas de muitos cidadãos que são portugueses e se sentem portugueses, mas a quem o acesso à nacionalidade é negado, na prática, por omissão ou por arrastamento.

            Não me refiro sequer às situações de aquisição de nacionalidade, pelo casamento ou por naturalização, embora mesmo a esse respeito muito houvesse que dizer. Reporto-me tão só ao que se passa no plano da atribuição da nacionalidade portuguesa aos filhos de pai ou mãe portuguesa.            São pessoas como os seus filhos ou como os meus filhos, que têm o direito de ver reconhecida a nacionalidade portuguesa como os nossos filhos o viram.

         A actual Lei da Nacionalidade (Lei nº 37/81, de 3 de Outubro) veio estabelecer no seu artº  1º, 1, al b) que são portugueses de origem “os filhos de pai português ou mãe portuguesa nascidos no estrangeiro se declararem que querem ser portugueses ou inscreverem o seu nascimento do registo civil português”.

         A mesma lei estabelece no seu artº 16º que “as declarações de que dependem a atribuição, a aquisição ou a perda da nacionalidade portuguesa devem constar do registo central da nacionalidade, a cargo da Conservatória dos Registos Centrais”.

         Por sua vez,  o artº 6º 1 al. a) do Regulamento da Nacionalidade, aprovado pelo DL nº  322/82, de 12 de Agosto, estabelece que os filhos de pai português ou de mãe portuguesa nascidos no estrangeiro  que pretendem que lhes seja atribuída a nacionalidade portuguesa devem manifestar a vontade de serem portugueses por uma das seguintes formas:

            a) Declarar na Conservatória dos Registos Centrais que querem ser portugueses;

            b) Inscrever o nascimento nos serviços consulares portugueses da área da sua naturalidade ou na Conservatória dos Registos Centrais, mediante declaração prestada pelos próprios sendo capazes ou pelos seus legais representantes, sendo incapazes”.

         Diz o nº 2 da mesma disposição que “a declaração ou o pedido de inscrição atributiva da nacionalidade deve ser instruído com prova da nacionalidade portuguesa de um dos progenitores”.

            Na hipótese de se pretender processar a  aquisição de nacionalidade por via de inscrição do nascimento há que instaurar processo de autorização para inscrição tardia de nascimento se o requerente tiver mais de 14 anos. Se a via escolhida for a de prestação de declaração para a atribuição de nacionalidade, então é tomada a declaração e transcrito o registo estrangeiro do nascimento (artº 8º,3 do Regulamento).

         Tudo parece extremamente simples e claro. Mas tudo é complicado pela burocracia da Conservatória dos Registos Centrais.

         Perante a má experiência dos registos consulares, muitos portugueses procuram ver reconhecida a nacionalidade por via da declaração a prestar, directamente ou por procurador, na Conservatória dos Registos Centrais.  Porém, embora essa via esteja garantida pela lei, a Conservatória dificulta quanto pode o seu uso.

            Se os interessados intentarem a atribuição da nacionalidade portuguesa por via da inscrição do seu nascimento na Conservatória dos Registos Centrais, esta repartição exige-lhe que apresente duas testemunhas, para confirmar a identidade e a residência do requerente. As testemunhas não vêm, naturalmente, dos Estados Unidos, do Brasil ou da Austrália e a Conservatória sabe isso perfeitamente... Nas mais das vezes são testemunhas profissionais, envolvidas em participações de procuradoria clandestina.

         Se o interessado pretender ver reconhecida a nacionalidade portuguesa por via da declaração  a que se refere o artº 1º, 1, al. b) da Lei da Nacionalidade, o que acontece é que lhe tomam a declaração mas não lhe fazem nem o registo de atribuição da nacionalidade nem o registo do nascimento, este por transcrição do registo de nascimento estrangeiro. Ainda no mês passado diligenciei no sentido de obter a atribuição da nacionalidade portuguesa a um jovem de vinte e poucos anos, nascido no Brasil, filho de um português natural de Mira.  Esse  jovem, de nome Ricardo Alfarelos, conseguiu uma bolsa de estudos no Reino Unido, válida apenas para cidadãos da  União Europeia. Chegou em Junho a Portugal, porque lhe asseguraram, no Brasil, que aqui conseguiria registar em poucos dias a sua qualidade de português. O cidadão conseguiu fazer a declaração para atribuição da nacionalidade em 4/12/95, mas não sabe quando se processará o respectivo registo.

         Os serviços da Conservatória dos Registos Centrais respondem sistematicamente, com a maior desfaçatez e com o maior desrespeito pelos direitos dos cidadãos que, posteriormente haverá de fazer-se uma marcação de tais registos... É absolutamente chocante, quando é certo que a Conservatória só ganharia com a  realização de tais registos  em simultâneo: os elementos necessários para a declaração e para os registos são os mesmos e a conferência dos documentos far-se-ia de uma única vez, acrescendo que, com um vulgar processador de texto  não demorariam esses registos mais do que uns minutos.

         O mau funcionamento da Conservatória dos Registos Centrais ultrapassa todos os limites do imaginável. Incapazes de organizar os serviços em termos que permitam satisfazer minimamente os direitos e interesses dos utentes, os seus responsáveis repartem-se entre a opção da dificuldade que estabeleceram como princípio e a opção da facilidade que ergueram como excepção.

         A primeira regra aponta para que  as exigências - como meio de dificultar - ultrapassem o legalmente admissível. Apesar do principio da oficiosidade em matéria de registo civil, a Conservatória dos Registos Centrais não procede ao trato sucessivo das situações sujeitas e registo, de forma a que todos os registos relativos a uma pessoa se possam processar em simultâneo. E assim, se a pessoa A, filha de um cidadão português quer proceder ao registo do seu nascimento, só aceita que tal registo se processe depois de transcrito o casamento dos progenitores, ainda que o declarante junto da autoridade estrangeira haja sido o progenitor português. Isto pode demorar (e demora normalmente) meses... Mas mais grave é ainda que se não aceite transcrever, no momento do registo do nascimento, os actos sujeitos a registo que se tenham processado noutros fori. Temos, por essa via, por exemplo, pessoas que são casadas transformadas em solteiras, quiçá com importantes implicações no plano do direito de família e do direito sucessório.

         A segunda regra  é a chamada regra do fax. Sem nenhum fundamento legal, sem nenhum critério e sem nenhum regulamento, na base de  considerações discricionárias sempre desconhecidas, o Conservador estabelece as prioridades, conforme os pedidos que lhe forem sendo feitos por telefax.

         É por demais óbvio que um sistema de prioridades sem critérios legais pré-definidos prejudica os demais cidadãos com processos pendentes, os quais são preteridos.

           

         Tive a oportunidade de denunciar essa situação numa petição dirigida ao Sr. Provedor de Justiça em  meados  de 1994, que deu origem ao processo que pende nos respectivos serviços com o nº  R-1752/94. O jornal “Tal & Qual” tornou pública a minha denúncia e a Direcção Geral dos Registos e Notariado ordenou a abertura de um inquérito, cujos resultados desconheço. Pende, por outro lado, na Polícia Judiciária um processo de inquérito em que se investiga a prática de procuradoria clandestina e a hipótese de haver situações de corrupção relacionada com este tipo de processos.

         A verdade é que a situação se agravou nos últimos tempos. Entre os meus constituintes há pessoas que prestaram há mais de seis meses declaração para atribuição da nacionalidade portuguesa e que não viram ainda registada nem a nacionalidade nem o nascimento. Em contrapartida, tenho indicação de que há processos que deram entrada na Conservatória muito depois e que já se encontram concluídos.

         Este quadro potencia a intervenção de pessoas sem escrúpulos que trocam as dificuldades pelo pagamento de elevados montantes. Há mafias organizadas de procuradores clandestinos que cobram aos nossos concidadãos espalhados pelo Mundo valores que ultrapassam tudo quanto é decente e razoável. Essas mafias são implicitamente protegidas pela Conservatória dos Registos Centrais, onde intervêm  de forma regular e sistemática, como procuradores regulares, indivíduos que, não sendo advogados ou solicitadores, não podem fazer procuradoria com carácter regular.  Apensam tais “procuradores” as referidas “testemunhas”, também elas mais ou menos  profissionais, tudo em termos que ajudam a justificar as dificuldades e as contas.

         Portugal não pode pretender ter, de uma lado, uma política que privilegia a ligação à Pátria de milhões de portugueses espalhados pelo Mundo e, de outro lado, impedir esses portugueses de titular o seu direito mais essencial: o direito à identidade, de que a nacionalidade é integrante.

         Parece-me que a Conservatória dos Registos Centrais está a ir “além da chinela”, ao criar as dificuldades que vem criando ao registo dos cidadãos portugueses nascidos no estrangeiro, como se lhe incumbisse decidir quem deve ser português e quem não deve.

         Não sou nem nunca fui um nostálgico do Império, mas não apago a alma quando em qualquer parte do Mundo, nas mais inesperadas situações e nos mais diversos enquadramentos ouço falar português ou ouço expressões de amor a esta terra. Sensibilizou-me ouvir de Leopoldo Senghor, nas  duas ou três vezes que com ele falei, a força com que falava das suas raízes lusas, em jeito de quem invoca uma riqueza que não se quer largar.

            Penso que a chamada cidadania europeia é, ao menos por enquanto,  uma ficção administrativa (em muito idêntica à efémera cidadania soviética) que não pode servir de pretexto para  liquidar  a cidadania portuguesa dos filhos dos emigrantes lusos. De qualquer modo, a própria cidadania europeia só ganhará com esta, de apport tão polifacetado.

         É hoje claro que, no quadro da UE se acentuam as pressões no sentido de forçar os estados de grande emigração a adoptar uma lógica de jus soli para restringir o acesso dos descendentes dos seus nacionais à cidadania europeia, decorrente da cidadania dos estados membros.  É sabido que essas pressões vêm, paradoxalmente, de países em que releva essencialmente o jus sanguinis  para o reconhecimento  dos respectivos nacionais.

         Parece-me que a questão da nacionalidade é daquelas em que Portugal não pode  fazer cedências. Nós temos muito mais a ver com os familiares que todos temos, nascidos no estrangeiro nas duas últimas gerações, do que  com os filhos dos estrangeiros que, sem qualquer afinidade cultural, aqui se vão fixando.

         Seria criminoso que, para resolver o problema do mau funcionamento dos Registos Centrais,  se adoptasse a via da restrição ao acesso à nacionalidade, que já é invocada, em jeito de previsão, para justificar o atraso e o desleixo.

 

         A integração de Portugal na União Europeia tem a maior importância para as comunidades portuguesas espalhadas pela África, pelas Américas e pela Oceânia. Há milhares de luso-descendentes para quem a UE abre novas perspectivas, nos mais diversos planos. São estudantes que aproveitando a cidadania da União podem estudar em qualquer dos países que a compõem; são empresários que, com o mesmo quadro, podem investir ou comerciar como portugueses e europeus; são, simplesmente, cidadãos que querem regressar às origens, depois de duas gerações de sofrimento migratório, e aqui terminar, em paz, os seus dias ou aplicar, com serenidade, a fortuna.

         Penso que a  emigração não pode interessar ao País apenas como gerador de invisíveis correntes. O que ela tem de mais importante, mesmo no plano económico, é a sua dimensão humana.  E dizer isto não significa, de modo algum, apontar uma política com perspectivas deficitárias. Felizmente, nos dias que correm,  o interesse dos luso descendentes em ver reconhecida a nacionalidade portuguesa tem mais a ver com prosperidade do que com penúria. Nas mais das vezes, os que procuram o reconhecimento da nacionalidade portuguesa,  são os que daqui partiram e se instalaram pobres em terceiros países onde alcançaram o sucesso e que querem agora fazer investimentos em Portugal ou na Europa, a partir de Portugal.

           

         Urge pôr termo, com a maior urgência, à escandalosa situação que vivemos nos enunciados domínios. Penso que a gravidade da situação justifica que Vª Exª promova um inquérito ao funcionamento da Conservatória dos Registos Centrais e que se adoptem de imediato medidas adequadas a reparar os seus vícios mais graves.

         Com muita tolerância, não é admissível que um registo requerido na Conservatória dos Registos Centrais possa demorar mais de dez dias a ser processado. Não é admissível que a integração dos actos de registo requeridos nas repartições consulares demore anos e anos.

         Todo este estado de coisas se pode alterar, de um dia para o outro, com os meios disponíveis, sem necessidade de aumentar os custos. Basta, apenas, que se faça um pequeno esforço de organização e que se definam novos métodos de trabalho, adequados a evitar duplicações de esforços e a reduzir o número de eventos inúteis.

         O que parece claro, para todos os que trabalham com a Conservatória dos Registos Centrais, é que não se irá a lado nenhum com a actual equipa dirigente, pela simples razão de que ela não mostra a mínima abertura à inovação e ao progresso e insiste em justificar com  dificuldades adicionais  a sua efectiva incapacidade. A este propósito, sem entrar em maiores detalhes, refiro-lhe apenas que esta repartição, incumbida pela lei de proceder a todos os registos de factos relativos a portugueses ocorridos no estrangeiro... desliga o fax entre as 17h00 e as 9h00.

        

         Cumpro, ao entregar-lhe esta exposição, um dever cívico. Mas, ao mesmo tempo, arrisco os meus actos profissionais e os dos meus Colegas à represália, que aliás já vimos sentido há meses, o que sendo grave directamente o é ainda mais indirectamente, na medida em que afecta os direitos e interesses daqueles que representamos.

            Esta sociedade de advogados trata de questões de registo civil e de contencioso de nacionalidade que lhe são colocadas por gabinetes de advogados de todo o Mundo, procurando desenvolver o seu trabalho com honorários módicos, fixados numa tabela válida para todo o planeta. Os valores dessa tabela - só possíveis com uma boa gestão e com o recurso às novas tecnologias da comunicação e do tratamento da informação - são muito inferiores (chegam a ser de 1/20) aos que são cobrados por procuradores clandestinos para a promoção de actos idênticos, o que nos têm valido grandes críticas. Sentir-nos-íamos extremamente desiludidos com o País que temos se, eventualmente, tivéssemos de concluir amanhã que as dificuldades que nos são criadas derivam do facto de ofendermos interesses económicos que se jogam nesta área.

 

         Espero que Vª Exª  mande adoptar as providências adequadas a reparar as situações denunciadas. Disponibilizo-me, desde já, para prestar os esclarecimentos adicionais que me queiram solicitar e  para cooperar com as entidades competentes com vista a encontrar soluções que permitam pôr termo a esta vergonhosa situação.

         Os meus mais respeitosos cumprimentos

Miguel Reis