quarta-feira, fevereiro 15, 2006

O drama da Justiça em Portugal


A situação da Justiça é dramática.
Temos todos a noção de que o navio bateu no fundo e continuamos a tentar tapar os buracos com paninhos de lã, como se, com isso, fosse possível evitar o naufrágio.
A busca ao jornal 24 horas, enquadrada como deve ser, é um gravíssimo sintoma, quando o País espera uma resposta do Procurador da República sobre questões gravíssimas há mais de trinta dias.
O último bastião de liberdade que restava incólume – o da liberdade de imprensa – foi posto em causa, abrindo-se a porta à possibilidade de, por via da apreensão dos computadores, matar à nascença qualquer investigação jornalística. Está aberta a porta para apreensão dos computadores de qualquer jornalista; e isso é tanto mais grave quanto é certo que nas sociedades modernas se considera que a investigação jornalística é autónoma e concorrente da investigação judiciária.
O maior drama do processo penal português está em que ele se transformou, quiçá, na mais brilhante homenagem às personalidades do homónimo de Kafka. E tudo indica que as reformas que se anunciam, em vez de reparar os males os agravarão, para infelicidade de todos os que sonham com o aperfeiçoamento da sociedade democrática.
As cadeias estão cheias de arguidos inocentes e indefensáveis, vítimas de um puzzling horrível gerado por esse monstro que se chama segredo de justiça. Afinal, todos temos que ter saudades dos tempos do fascismo (excepcionando-se o quadro dos crimes políticos). Quem se soubesse suspeito tinha o direito de saber porque o era e de oferecer provas para destruir a suspeição. Quem fosse réu (agora arguido) tinha acesso a todos os elementos do processo, podendo apresentar imediatamente as suas provas e pedir a intervenção de um juiz.
Hoje um cidadão é preso sem saber porquê e não tem nenhuma possibilidade de defesa, porque, durante meses, não tem acesso ao processo. E depois, quando o processo se abre, conclui-se, com enorme frequência, que não havia elementos que justificassem a prisão e, sobretudo, que nada justificava que o processo fosse mantido em segredo.
O segredo de justiça serve exclusivamente para evitar a defesa que, estando o arguido inocente, haveria de ter uma dinâmica adequada à sua libertação. Isso não interessa a ninguém; o que o sistema, no essencial, protege é a incapacidade, às vezes a incompetência e, por regra, a negligência de um sistema de investigação que tem o mais profundo desrespeito pelos cidadãos.
Há regras que são objectivas: uma delas é a de que só deve decretar-se uma prisão preventiva ou só deve deduzir-se uma acusação quando os autos contiverem elementos que permitam concluir pela quase certeza de que o arguido vai ser condenado.
Ao invés, assistimos hoje em Portugal à promoção e à acusação temerárias, destruindo-se vidas e reputações sem que nada aconteça aos irresponsáveis que acusam sem o mínimo de provas e sem o mínimo de nexo.
O segredo de justiça justifica-se, antes de tudo, para proteger os cidadãos, não para proteger a investigação, que se protege a ela própria. Não deve, por isso, ser usado, essencialmente, para proteger o puzzing e o marketing judiciário de polícias incompetentes que, em vez de descobrirem os crimes ocupam o tempo a montar operações de comunicação adequadas a construir uma imagem falseada das instituições policiais.
A falta de rigor, a condenação sem provas na base de puras convicções e às vezes mesmos de montagens e invenções, a irracionalidade e sobretudo a falta de sensibilidade para a dúvida, mataram o sagrado princípio in dubio pro reo, em que reside um dos pilares da justiça criminal moderna.
Todos temos a noção deste cancro e todos nos calamos. Pior: todos o encobrimos, como a Justiça pudesse merecer a confiança dos cidadãos, quando perdeu toda a transparência que deveria marcar o seu véu.
É preciso pôr termo ao tabu de que não se deve questionar a Justiça. Até o Bloco de Esquerda já diz que não discute as «diligências judiciais» quando é precisamente isso que tem que se discutir, antes de tudo.
Tem que acabar o puzzling em que só joga um player, às vezes com peças falsas sob pena de continuarmos a assistir, ingenuamente, à destruição das mais elementares liberdades públicas. Para isso é preciso uma nova educação e uma nova cultura judiciária, marcada pela responsabilização pessoal dos agentes temerários.
Um jornalista que produza uma acusação difamatória sem provas é julgado e condenado. Um particular pode ser condenado por denúncia caluniosa. Porque não o há-de ser, por maioria de razão, um magistrado que acuse o promova sem fundamento sério?
No âmbito do processo civil não vão melhor as coisas.
A redução do papel das partes e o reforço dos poderes dos juízes aumentou a insegurança das decisões, muitas vezes tiradas por mera convicção, sem qualquer prova. Um caloteiro arranja duas falsas testemunhas que dizem que ele pagou, não exibe qualquer prova do pagamento nem de onde lhe veio a fortuna e o credor corre o sério risco de nada receber.
O processo civil já é uma manta de retalhos em que cada governo faz pior do que o anterior. E esta gente, em vez de parar para pensar, o que anuncia são asneiras.
A reforma da acção executiva é um desastre completo, porque não se tomaram em considerações coisas tão simples e tão evidentes como as que respeitam ao uso das novas tecnologias.
É elementar compreender que a desmaterialização processual ou é integral ou implica uma duplicação de procedimentos que transformará os tribunais num caos completo, total e incontrolável.
O problema do processo civil não se resolve aumentando o valor das alçadas nem reduzindo o âmbito dos recursos. Ninguém pode compreender que, conseguindo-se nos recursos, com elevada percentagem, uma modificação da decisão, se reduzam os mesmos, com o único fim de desbloquear os tribunais.
Se os tribunais superiores revogam, em grande percentagem, as decisões dos tribunais inferiores é porque elas padecem de vícios. Obviamente que esses vícios não acabam com os fim dos recursos.
Num dia destes matam-se os cirurgiões de topo, porque reduzem os casos em que as pessoas morreriam por morte natural.
É dramático.

Lisboa, 15/02/2006
Miguel Reis