Ando
há meses a dormir mal por causa disto...
Um
jovem português foi contratado para prestar serviços no Consulado Geral de Portugal
em São Paulo.
O
patrão era uma empresa com sede em Osasco e as funções eram de “assistente administrativo”.
O
ordenado era de, apenas, 1.260 reais, qualquer coisa como 378 euros.
O
jovem foi sumariamente ensinado a atender telefonemas de brasileiros e de
emigrantes portugueses.
Passados
dois meses, entregaram-lhe os logins
e as passwords de outros funcionários
para acesso à base de dados do SIRIC, à base de dados do Sistema de Gestão
Consular, à base de dados do cartão de cidadão e à base de dados dos
passaportes eletrónicos.
A
partir desse momento, o jovem passou a poder falsificar assentos de nascimento
atributivos de nacionalidade portuguesa, assentos de casamento, assentos de
óbito, pedidos de cartão de cidadão e pedidos de passaporte.
Havia
mais “funcionários terceirizados” a fazer o mesmo
Processou
milhares de registos e de pedidos de cartões de cidadão e de passaportes,
usando o nome de funcionários de carreira, os únicos a quem o Estado dera logins e passwords.
Quando
perguntou porque era assim, alegando que se sentia numa situação incómoda, a
usar o nome de outra pessoa, disseram-lhe que era assim... e despediram-no.
O
André – assim se chama ao jovem – consultou-me como advogado e eu aconselhei-o
a denunciar a situação ao Ministério Público, o que fiz em sua representação.
Teve
sorte, porque o Ministério Público considerou que era claro que ele não tinha
intenção de causar prejuízos ao Estado e que, para além disso, agiu com
permissão do proprietário (dos sistemas informáticos) como se os outros funcionários
o fossem. E com esse fundamento arquivou o processo.
Excelente,
desabafei eu comigo mesmo, porque cairam por terra os crimes de falsificação de
documentos e, sobretudo, de usurpação de funções que eu tinha visto naquelas
condutas.
Há
dias tive uma noite de insónias e peguei no Código do Registo Civil, em cujo
artº 88º se lê: A falsidade do registo pode
consistir em... a
aposição do nome do funcionário não ser da autoria da pessoa a quem é atribuída.
O nome posto pelo André nos assentos que
processou nunca foi o seu. Foi sempre o de um funcionário, dono do login e da password, quem não viu nem o requerente nem os documentos.
No dia seguinte pedi dez cópias não
certificadas de assentos escolhidos, aleatoriamente, na listagem dos assentos
do André.
Todos esses assentos terminam com a menção
de que foram feitos pelo José Carlos, o funcionário que lhe cedeu os logins e as passwords e que passou a ser avaliado, também, pelo trabalho do
André.
Só nesta listagem do André (que é só de um mês) estão 329 registo de nascimento, 186 registos de casamento e 71 registos de
óbito.
Um
fantástico negócio, pois que só em emolumentos, partindo do princípio de que os
registos de nascimento são de adultos, o Consulado embolsou 104.570 euros, ou
seja 348.137 reais, o que daria para pagar ao André durante 276 meses.
Isto
é especialmente chocante porque transa, num primeiro grau, a discriminação e
xenofobia.
Os
Portugueses – de Portugal – encontrem-se onde se encontrarem são tratados com
uma dignidade de primeiro mundo.
Os
atos de registo civil, bem como os pedidos de cartão de cidadão e de passaporte
são processados por funcionários licenciados em direito ou sob a sua direção.
É
para pagar a funcionários com essas qualificações que há um sistema emolumentar
justificado pela necessidade de prestação de serviços qualificados.
No
exterior o Estado trata os portugueses não como Portugueses, mas como portugueses de segunda, operando atos da
mesma natureza por não funcionários,
a quem impõe o uso de credenciais falsas de funcionários.
Seria
extremamente injusto se aqueles falsos funcionários fossem punidos pela prática
de crimes de usurpação de funções e de falsificação de documentos, pois que são
os únicos inocentes, nesta trama que, ao que se diz em São Paulo, tem origem na
“capital do Império”.
Há,
porém, outro lado do prisma, pelo qual não podemos deixar de observar.
Todos
os registos, os pedidos de cartão de cidadão e de passaporte processados pelos “funcionários
terceirizados” do Consulado Geral de Portugal em são Paulo são falsos, mesmo que as pessoas julguem que são válidos.
Todos
os atos e documentos falso são identificáveis pelas listas elaboradas pelos
funcionários terceirizados, que não deixarão de as entregar às autoridades no
momento próprio, até para serem ilibados de qualquer pena.
A
falsidade tem como consequência a nulidade e deriva da própria natureza do
documento.
Relevam,
especialmente, os seguintes aspetos:
Em
primeiro lugar, os atos de registo civil só podem ser processados, no
estrangeiro por agentes
diplomáticos e consulares portugueses, que
são funcionários de carreira.
Em segundo lugar, como já se referiu, o artº 88º do Código do
Registo Civil estabelece que é falso o registo quando o nome do funcionário
aposto no mesmo não corresponda ao da pessoa que o processou.
Em terceiro lugar, estabelece o artº 372º do Código Civil
que o documento (autêntico) é falso quando nele se atesta como tendo sido
objeto da perceção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na
realidade se não verificou, ou como tendo sido praticado pela entidade responsável
qualquer ato que na realidade não o foi.
O
problema dos registos falsos e do falsos pedidos de cartão de cidadão e de
passaporte no Consulado Geral de Portugal em São Paulo reside no facto de os
mesmos terem sido processados por pessoas que não funcionários e que não têm
competência para tais funções, usando os logins
e as passwords dos verdadeiros
funcionários.
Se
se forem verificar os atos, constata-se que eles constam como tendo sido
processados pelos verdadeiros funcionários, quando, na realidade o não foram,
pelo que são falsos.
São
há uma forma de reparar esta grave situação, que é a de reconhecer a nulidade
dos atos e a de processar atos novos.
Têm
legitimidade para reparar tais erros os funcionários titulares dos logins e das passwords que foram utilizadas e que, ao que sabe, foram
convencidos da legalidade do procedimento.
Relativamente
aos que conheço não tenho quaisquer dúvidas de que nunca autorizariam o uso dos
seus logins e das suas passwords se tivessem consciência de que poderiam estar
a praticar, em co-autoria, crimes de
usurpação de funções e crimes de falsificação de documentos, para além do mais,
com vista a reduzir-lhes o trabalho.
Têm,
outrossim, legitimidade para pedir a declaração de nulidade do ato e o
processamento de novo ato, sem pagamento de mais emolumentos, os que foram
lesados pelo Consulado, por via de falsos funcionários.
E
como se verifica isso?
As
pessoas que foram atendidos pelos falsos funcionários receberam,
posteriormente, uma certidão por cada ato de registo, no fim da qual consta
quem lavrou o registo.
Se
o nome daí constante corresponder ao da pessoa que o/a atendeu, estamos perante
um registo verdadeiro.
Se
o nome for diferente do da pessoa que o atendeu, estamos perante um registo
falso.
Finalmente,
têm condições para reparar as ilegalidades que cometeram, os falsos funcionários
– empregados terceirizados – que foram convencidos a usurpar funções próprias
dos funcionários diplomáticos e consulares e que agiram sem consciência da
ilicitude dos seus atos.
Para
além de prejudicar a fé pública que merecem os documentos públicos,
prejudicaram, por via da falsificação de atos de registo civil e de pedidos de
cartão de cidadão e de passaportes, os cidadãos que procuraram o Consulado e
que por eles foram enganados.
Todas
essas pessoas fizeram registos falsos e são portadores de registos falsos e
muitas delas não o sabem.
O
Consulado tem todas as condições para reparar esta gravíssima situação, pois
que os “funcionários” terceirizados elaboravam mensalmente um registo das
falsificações que o Consulado os
obrigava a fazer.
Se
houvesse Ética, amanhã começariam a enviar-lhes cartas para declarar a nulidade
dos atos nulos e processar novos atos, com assunção da responsabilidade dos
custos pelo próprio Consulado.
Por
mim, que não pactuo com isto, vou recorrer a todos meios para que se repare
esta gravíssima situação e se ponha termo à continuação das falsificações.
Lisboa,
14 de abril de 2017
Miguel
Reis