Cheguei ontem a Goa, eram seis da manhã.
Tinha à minha espera no aeroporto os meus amigos Geffrey de Sousa, Emérico Pereira, Lúcia Castelino e Anthony d'Sousa, todos eles indianos, muito ligados a Portugal.
A Lúcia e o Anthony levaram-me para a casa da família Castelino, em Bardez, onde prepararam um pequeno almoço à moda goesa, que é a mesma que a portuguesa, porém com mais educação. Exigiram-me que tomasse a cabeceira da mesa, que aqui é cedida aos hóspedes pelo pater familias.
Fiquei encantado com este primeiro contacto. Uma linda casa, cheia de memórias, com todos os meus interlocutores - luso-indianos ou indiano-lusos, não sei bem - a falar um português perfeito, mais correcto do que o que ouvimos no dia a dia em Lisboa.
Alguns deles não sabem escrever, mas dominam a lingua falada, tanto na fonética como na construção, de uma forma absolutamente perfeita.
O patriarca - o Sr. Castelino - foi secretário do último governador de Damão e é um poço de recordações que hei-de explorar nesta ou noutras viagens. Uma daquelas pessoas com quem o prazer da conversa surge no primeiro minuto.
Sempre encarei a invasão do Estado da Índia pela União Indiana como uma coisa politicamente natural. Tenho lido muito sobre a matéria e sou da opinião de que não contribuiu para ela apenas o nacionalismo indiano, havendo fortíssimos indícios de que houve em todo esse processo uma mãozinha inglesa.
Como que enciumados pela independência da Índia, os nossos velhos aliados terão contribuido para que a invasão se desse, em vez de aconselharem veementemente o ditador Salazar a abrir portas a uma negociação que permitisse manter, sem complexos, o equilíbrio da sociedade existente naqueles territórios.
Um dos ganhadores da ocupação foi precisamente a Inglaterra, que, por tal via, apesar de todos os contratempos, limpou do mapa a influência da cultura portuguesa, passando a afirmar-se como potência cultura dominante em toda a região.
Essa era, aliás, uma consequência natural e perfeitamente previsível, da associação da intolerância salazarista com o nacionalismo indiano, forjado sobre uma língua de união, um tanto à semelhança do papel de sucesso que a língua portuguesa teve na independência do Brasil.
Bem pior do que a perda da influência da língua portuguesa nesta região - que tem origens mais remotas, agravadas nos meados do século XIX- foram os traumas que a intolerância salazarista deixaram nesta sociedade, ao ponto de pessoas que se sentem portuguesas por afecto e indianas pela realidade da história, terem medo de invocar os seus direitos.
Observei isso esta manhã, numa conversa com J. nascido quando este era um território português. Dizia-me ele que sente português porque nasceu debaixo da nossa bandeira e todos os ancestrais o foram, mas que deve à Índia tudo o que tem, porque foi depois da «libertação» que esta terra cresceu e se afirmou como o estado com maior rendimento per capita do país.
«Eu sou um português indiano» - dizia-me, para logo a seguiu comentar que tem dificuldade em que alguém perceba isto, como se nesta matéria fosse impossivel ter dois amores ou amar duas pátrias.
Constatei que reina aqui uma enorme confusão - e um emaranhado de traumatismos - sobre uma série de questões, que vão desde o cultural ao político, passado pela questão da dupla nacionalidade.
Essa confusão está, aliás, bem espelhada em diversos sítios da net, onde os radicais da Índia de de Portugal procuram anular mutuamente direitos de cidadania adquiridos (e por isso respeitáveis) suscitando, uns e outros, argumentos patéticos, que relevam do mau conhecimento das realidades jurídicas.
J., para dar apenas esse exemplo, estava convencido de que se procedesse ao registo do seu nascimento no registo civil português, vendo reconhecida, por essa via, a nacionalidade portuguesa, perderia a nacionalidade indiana, passando a ser estrangeiro na sua própria terra, porque Portugal o obrigaria a isso, como que numa tentativa de recuperar o território, por via da infiltração de portugueses na Índia.
Ora, ele quer ser português - porque diz que o é do coração e até é sócio do Benfica - mas não quer deixar de ser indiano, porque foi a Índia que fez progredir a sua vida.
A família era pobre, à beira do miserável, e depois da libertação, a que nós chamamos ocupação, o território progrediu de forma notável, o que, por si só justifica não só o amor mas também a dedicação à segunda pátria, que em termos de convivialidade passou a ser a primeira, uma vez que ocupou o espaço e as funções daquela.
Lá lhe expliquei o sem sentido das suas preocupações, mas fiquei para mim próprio com a ideia de que este complexo traumático é isso mesmo... complexo.
Vou tentar conhecê-lo melhor nos próximos dias.
Escrevo estas linhas no excelente complexo da Miramar Residence, à beira do Mandovi. São quase 3 da manhã, mas ainda não recuperei do jet-lag, pois são menos 5h30 em Lisboa.
O tráfego do rio, que antes era sereno, não para, com os barcos de minério que passam a cada minuto para o porto de Mormugão.
A cidade de Pangim «fechou» por volta da meia-noite. Nem um táxi na rua, o que me obrigou a apanhar uma boleia de mota, que um outro português me facilitou.
Goa está sob a ameaça do terrorismo internacional, com soldados barricados nos pontos principais da cidade e em todas as praias, onde foram cancelados os tradicionais eventos nocturnos.
É uma dimensão que não conhecemos bem em Portugal e na Europa e que suscita inúmeras questões de política internacional, a ver, em primeiro lugar com as situações do Afeganistão e do Paquistão.
A primeira pergunta que me coloco é a de saber a quem interessa a instabilidade deste grande país e da sua economia.
Tudo está encoberto por cortinas de fumo, a começar pelos massacres de Bombaim, que não mais visaram do que o coração da economia indiana.