Tive o prazer de minutar o recurso que Manuel de Melo apresentou no Tribunal Constititucional.
Aqui fica para memória futura.
Depois do apuramento parcial das dezanove mesas de voto, constatando que havia um elevado número de votos nulos (mais precisamente 1968), porém com percentuais muito diferentes em cada uma das mesas, o Partido Socialista requereu a recontagem dos votos nulos de todas as mesas e a apreciação dos votos sob protesto pela assembleia de apuramento geral, nos termos do disposto nos artº 108 e seguintes da LEAR.
A recontagem foi pedida, outrossim, porque se constatou serem diferentes os critérios usados pelas diversas mesas de apuramento.
Numas mesas eram validados os votos em cujos sobrescritos o eleitor havia incluído o próprio boletim de voto e cópia do cartão de eleitor.
Noutras mesas os votos nessas mesmas condições eram considerados nulos.
Pretendeu o PS que todos os votos fossem de igual valor, desde que estivessem nas mesmas condições, até para que, a bem da democracia, não pudesse suscitar-se o labéu do favorecimento de qualquer dos partidos, sabido como é que, com a junção do cartão de eleitor no mesmo sobrescrito do voto, desaparece completamente o sagrado segredo do mesmo.
Constatou o recorrente que haviam sido distribuídas pelo STAPE umas “instruções” às diversas mesas, que contêm normas que alguns presidentes de mesa consideraram ofensivas do disposto na Lei Eleitoral para a Assembleia da República (Doc. denominado Acta, que se junta com o nº 1).
Mas constatou, sobretudo, que, para além de uns cumprirem estas “normas” e outros as não aceitarem, havia um tertium genus na apreciação dos votos nulos correspondentes à mesa 16, que consistia em os considerar plenamente válidos, apesar de todos os boletins do lote estarem classificados como “nulos”, com a palavra em capitais de grande dimensão, no verso, sem que houvesse qualquer fundamento que permitisse ajuizar da bondade do “milagre” da transformação.
Se relativamente às outras mesas se poderia colocar – e agora se coloca – a questão da violação do sigilo do voto – como abaixo melhor se explicará, relativamente à mesa 16 colocava-se, pura e simplesmente, a questão de saber porque razão um conjuntos de votos classificados como nulos, passava, de um momento ao outro, a ser um conjunto de votos válidos.
O que ocorreu pode resumir-se do seguinte modo:
Numas mesas, em cumprimento do disposto no Decreto-Lei nº 95C/76, de 30 de Janeiro, foram considerados nulos os votos que não obedeciam aos requisitos estabelecidos nesse diploma.
Noutras mesas, em violação do disposto no Decreto-Lei nº 95C/76, de 30 de Janeiro, foram considerados válidos votos que não cumpriam os requisitos desse diploma, nomeadamente por não virem os boletins acompanhados de cópia do cartão de eleitor, ou por o cartão de eleitor vir no mesmo envelope (o envelope verde) destinado a transportar, exclusivamente, o boletim de voto.
As mesas que validaram, em violação da lei, todos os votos nulos obtiveram valores de votos nulos insignificantes (6 nulos na mesa 1, 6 nulos na mesa 4, 1 nulo na mesa 6, 0 nulos na mesa sete, 1 nulo na mesa 13, 0 na mesa 15 e 1 na mesa 18).
Pelo contrário, as mesas que respeitaram rigorosamente as disposições legais, obtiveram, para números semelhantes de eleitores, valores incomparavelmente superiores (141 na mesa 2, 152 na mesa 3, 109 na mesa 5, 350 na mesa 8, 143 na mesa 9, 188 na mesa 10, 172 na mesa 11, 108 na mesa 12, 104 na mesa 14, 73 na mesa 16, 193 na mesa 17 e 220 na mesa 19).
São absolutamente ilegais as normas estabelecidas na acta que se junta como Doc. nº 1 e avocadas pela assembleia de apuramento geral, conforme consta da acta que se junta como Doc. nº 2) e de que só agora se tomou conhecimento.
Verificada a diversidade de critérios entre as diversas mesas, terá a assembleia de apuramento geral tentado uniformizar as práticas.
Para isso, na operação de recontagem, considerou votos válidos os que haviam sido considerados nulos, em diversas mesas, apenas porque a fotocópia do cartão de eleitor vinha no mesmo sobrescrito do boletim de voto, em ofensa do disposto nos artº 8º e 9º do referido DL nº 95C/76, de 30 de Janeiro.
Nalgumas mesas, aberto o sobrescrito branco e verificada a inexistência de cópia do cartão de eleitor, declarava-se imediatamente nulo o voto, sem sequer abrir o sobrescrito verde. Os boletins destas mesas chegaram, pois, intactos, dentro dos envelopes verdes, à assembleia de apuramento geral, onde foram abertos e considerados válidos os que continham no interior, para além do boletim, uma cópia do cartão de eleitor.
Dá-se de barato o facto de, com esta metodologia, se anular completamente o sigilo do voto, passando todos os presentes a saber em que tinha votado o cidadão X ou o cidadão Y., posto que os votos não foram colocados em qualquer urna.
Houve, todavia, um caso – o da mesa 16 - em que a mesa, para além de abrir o envelope branco, verificando que não havia cópia do cartão de eleitor, abriu também o envelope verde, retirou o boletim de voto e classificou o voto como NULO escrevendo a palavra no seu verso, ou a anotação de que “não apresentou identificação”.
Estes boletins de votos, em numero de 73, foram apresentados à assembleia geral de apuramento, fora dos envelopes verdes e sem qualquer relação com os envelopes brancos.
Tratava-se , tão só, de um molho de boletins de voto, atado com um elástico e sem nenhuma relação com os envelopes referidos, não podendo sequer saber-se se tinham vindo em algum envelope, se haviam sido retirados dos que entraram na urna ou se, pura e simplesmente, ali chegaram por milagre.
Aliás, na acta de apuramento da mesa 16 nenhuma justificação se dava para o facto de aquele lote de votos ter sido considerado nulo, sendo certo que nulos haviam sido considerados os que tinham a palavra NULO bem como os que continham a anotação de que “não apresentou identificação”.
Ora, o que ocorreu na assembleia de apuramento geral foi que se considerou
Serem válidos os boletins que tinham escrita a palavra NULO
Serem nulos os boletins em que se escreveu “não apresentou identificação”.
Estamos, obviamente, perante uma absoluta perversão do sufrágio, tanto mais que da acta da mesa de apuramento nº 16 não resulta nenhuma diferenciação de critérios para a classificação dos votos nulos, cuja soma totalizava precisamente o daquelas duas categorias gráficas (“Nulo” ou “não apresentou identificação”).
Era por demais óbvio que não podia a assembleia de apuramento geral considerar
de um lado, que os eleitores dos boletins classificados como NULOS tinham apresentado identificação;
de outro, que os eleitores dos boletins com a menção de que “não apresentou identificação” efectivamente a não terão apresentado, nas mesmas condições em que a apresentaram os que o fizeram incluindo a cópia do cartão do mesmo sobrescrito.
É que, ao contrário do que ocorreu noutras mesas, em que, tendo sido verificado que não havia cópia do cartão de eleitor no envelope branco pura e simplesmente não se abriu o envelope verde, sendo possivel fazê-lo na assembleia de apuramento geral e confrontar o envelope branco com os cadernos eleitorais, aqui, no caso da mesa 16, nenhuma verificação era possivel fazer.
Não se põe em causa a idoneidade das pessoas, todas elas ilustres, que constituíram as mesas.
Mas não basta à mulher de César ser séria... É preciso, também que o pareça; e por isso mesmos as leis eleitorais dos países modernos são extremamente exigentes em formalidades, de forma a que nenhuma suspeita possa suscitar-se sobre os processos eleitorais.
Ora, no caso da mesa 16, tal como tudo ocorreu, era perfeitamente possivel ter preparado e levado para a assembleia de apuramento geral um lote de votos com as características do que ali foi levado sem que tais votos tivessem alguma coisa a ver com os eleitores.
A pureza do sufrágio passa tradicionalmente, pela limpeza e pela segurança da urna, não sendo por acaso que ela se lacra depois de se mostrar aos eleitores que nada tem no seu interior.
O voto tradicional tem sempre uma relação com uma urna e com um caderno eleitoral duplicado.
No processo eleitoral no estrangeiro, regulado pelo DL nº 95C/76, citado, o voto tem uma relação com um envelope verde, que lhe protege o segredo, com um envelope branco e com um caderno eleitoral.
Nos termos do artº 19º desse diploma:
Os presidentes das assembleias de voto entregam aos escrutinadores os envelopes brancos, descarregando-se os votos nos cadernos eleitorais;
De seguida, mandam contar os votantes pelas descargas nos cadernos eleitorais;
Após esta contagem, mandam contar os envelopes brancos, que são imediatamente destruídos;
E só após a destruição dos envelopes brancos é que podem ser abertos os envelopes verdes, a fim de conferir o numero de votos recolhidos.
Decorre deste mecanismo próprio da organização do processo eleitoral no estrangeiro que uma operação como a que foi feita na mesa 16 ou é claramente fundamentada ou é uma “operação escura”.
Em bom rigor, não se sabe por que razão foram classificados de NULOS alguns dos boletins e em que condições se apôs a anotação “não apresentou identificação”, ou seja se esta anotação foi feita antes de abrir o envelope verde ou depois.
e outro lado, suscita-se uma dúvida de maior gravidade que é a de saber se foram escrutinados e abatidos nos cadernos eleitorais os votos dos “cidadãos” que não apresentaram identificação ou seja, se se admitiram a votar “cidadãos” que nem sequer sabemos se existem ou não.
Quando se apercebeu da gravidade desta situação, pretendeu o candidato agora recorrente deduzir o seu protesto, mas, como se disse, foi mandado calar, com a ameaça de que seria posto na rua, não deixando o presidente da assembleia que se exprimisse.
Da acta nada consta relativamente aos protestos do agora recorrente. Mas consta o “sumo” do que atrás se alega: referindo-se à mesa 16 escreve-se na acta que se junta como Doc. nº 2 : “Na acta de operações eleitorais, foram considerados nulos 73 votos por falta de identificação. A assembleia geral deliberou, por unanimidade, por não ter visto razão para os considerar nulos, validar 39, distribuídos das seguintes formas; PS 16, PPD/PSD 17, PCP/PEV 5, CDS/PP 1...”
Com todo os respeito por opinião diversa, estamos perante uma autêntica barbaridade:
A mesa de apuramento nº 16, segundo consta da própria acta da assembleia de apuramento geral considerou que havia 73 votos que teriam de considerar-se nulos por falta de identificação.
Fica claro da acta que não se trata de errada apresentação da classificação, dentro do sobrescrito que contém o boletim, mas de falta objectiva de identificação, como se fossem almas mortas a votar...
Afinal, resulta da acta que nem se sabe se foram cidadãos portuguesas quem votou, porque não se lhes conhece a identificação.
Todavia (por obscuras razões, porém suficientes para alterar radicalmente os resultados eleitorais...) a assembleia de apuramento geral considerou válidos, sem invocar nenhum fundamento os votos de 39 das almas mortas (sem identificação) que a mesa de apuramento nº 16 tinha considerado nulos.
E qual é a justificação? Simplesmente fantástica, porque é no domínio do fantástico que entramos: “a assembleia geral deliberou validar 39 dos votos “por não ter visto razão para os considerar nulos”, sabendo embora, porque não podia deixar de o saber que eles são votos de pessoas sem identidade, não sendo sequer possivel à assembleia proceder a qualquer verificação.
Hão-de compreender Vªs Exªs, Senhores Conselheiros, que não convinha ao Sr. Presidente da Assembleia de Apuramento Geral, admitir que o ora recorrente tomasse a palavra para protestar, para denunciar em espaço aberto esta singular irregularidade.
Suspeita, legitimamente, o ora recorrente que esta operação foi uma cereja meticulosamente preparada para colocar no topo do bolo.
Para alguém que tenha um mínimo de tino e alguns conhecimentos de matemática é sensível a noção de que no domínio do método de Hondt nem sempre o crescimento em numero de votos é sinónimo de ter mais deputados.
No caso vertente tudo parece ter sido meticulosamente estudado, como se de uma solução por medida se tratasse: com estes 39 votos, sendo 17 para o PSD e 16 para o PS, o PSD elege um deputado. Se for respeitada a lei e declarados nulos os votos apurados como tal na mesa 16, o PSD não elege qualquer deputado elegendo o PS mais um deputado.
Ou seja: perdendo embora 16 votos, o PS elege mais um deputado. E no momento em que o recorrente quis protestar e o presidente da assembleia de apuramento geral não lhe admitiu o protesto era possivel ter o conhecimento desta realidade, sendo provável que ele próprio tivesse a noção das consequências da validação que veio a ser adoptada.
CONCLUSÕES
I. Os candidatos a deputado tem o direito de assistir aos trabalhos da assembleia de apuramento geral e de apresentar protestos, reclamações e contra-protestos (artº 108º,3 da LEAR);
II. Gozam os candidatos a deputado à Assembleia da República, para além do mais, da liberdade de expressão, fundamental ao exercício dos seus direitos políticos, nomeadamente do de protesto, não podendo esse direito ser limitado ou condicionado por qualquer modo.
III. Ao proibir o recorrente de formalizar um protesto, perante o que ele recorrente considerou ser um grave atentado às leis eleitorais, o presidente da assembleia de apuramento geral ofendeu o disposto no artº 108º,3 da LEAR e o artº 37º,1 da constituição.
IV. Ao ameaçar, reiteradamente, e no quadro das suas prerrogativas de autoridade que o expulsaria da sala de não se calasse, o presidente da assembleia de apuramento geral inviabilizou a formalização de protesto, que o recorrente tinha o direito de fazer verbalmente.
V. Provando-se que o recorrente protestou e foi silenciado nos referidos termos, deve o recurso ser admitido, à luz do disposto nos artºs 117º e 118º da LEAR.
VI. A assembleia de apuramento geral ao adoptar as regras constantes da sua acta, ofendeu nomeadamente os artºs 8º, 9º 10º e 19º, nºs 3,4,5 e 6 do Decreto-Lei nº 95C/76, de 30 de Janeiro.
VII. A assembleia de apuramento geral ofendeu também inequivocamente, o princípio do sufrágio secreto, ao admitir a violação dos sobrescritos que contém boletins de voto em termos que permitem a identificação dos votantes com a força política em quem votaram.
VIII. Ao considerar válidos, sem apresentar qualquer fundamento, 39 dos 73 votos considerados nulos pela mesa de apuramento nº 16, a assembleia de apuramento geral adoptou uma medida adequada a favorecer a eleição de um deputado pelo PPD/PSD que não será eleito sem a transformação desses 39 votos nulos em votos válidos.
IX. Não pode a assembleia de apuramento geral converter em votos válidos os votos que foram considerados nulos pela mesa de apuramento com fundamento no facto de os eleitores não terem apresentado prova da sua identificação.
X. A lei não admite a nenhuma pessoa o exercício do direito de voto sem que se identifique no momento do sufrágio.
XI. Sem prejuízo da censura geral que merecem os trabalhos da assembleia de apuramento geral do Circulo Eleitoral da Europa, deve este Tribunal julgar procedente o recurso e anular a deliberação da referida assembleia que transformou 39 votos nulos da mesa nº 16 em votos válidos, com as legais consequências em matéria de atribuição de mandatos.
XII. Se assim se não entender, porque todo o processo de apuramento está manchado por vícios, deve anular-se o sufrágio no referido círculo, procedendo-se a novas eleições no prazo legal.
Decidindo como se sugere protegerão Vªs Exªs a Democracia e realizarão a sempre esperada Justiça.
(...)