sábado, outubro 02, 2010

O problema da (in)sustentabilidade do Estado

O problema da (in)sustentabilidade do Estado não consegue fugir, por mais que alguns iluminados sustentem o contrário, a algumas das regras clássicas da economia e das finanças.


A adição ou a retirada do prefixo dependem, no essencial, de operações matemáticas, por mais que os políticos e os jornalistas insistam em demonstrar o contrário.

Uma velha regra, parafraseada em meia dúzia de aulas pelo saudoso Prof. Teixeira Ribeiro é a de que a despesa pública não deve realizar-se se não tiver cabimento num orçamento que, de forma rigorosa, a preveja e preveja a sua cobertura pelas receitas do Estado.

As receitas clássicas do Estado decorrem dos impostos e das taxas, com que se alimenta o sistema fiscal, as quais são, naturalmente, influenciadas, pela evolução da economia real e pelo seu dinamismo.

Quando o Estado é um plenamente soberano (como acontecia com Portugal antes da integração no grupo do Euro) pode aumentar as suas receitas por via da emissão de moeda, mesmo que as emissões massivas possam implicar a sua desvalorização.

Quando, como agora acontece com Portugal, um país não pode, pela natureza das coisas, desenvolver políticas monetárias próprias, a sua (in)sustentabilidade depende da capacidade para gerar um equilíbrio, ainda que de médio e longo prazo entre as receitas e as despesas.

Os Estados podem, como os particulares, recorrer ao crédito. Mas é por demais óbvio que tal recurso, por maior que seja a solidariedade dos seus parceiros, depende da credibilidade das suas políticas e, desde logo, da demonstração da sua capacidade para solver os seus compromissos.

A elevação das taxas de juros é a menos grave das consequências do desequilíbrio das contas públicas, de forma semelhante ao que acontece com as empresas. Gravíssimo é, porém, qualquer quadro em que o credor preveja, em resultado da mera observação da economia real, que o devedor nunca conseguirá pagar aquilo que deve.

Uma observação minimamente atenta da realidade portuguesa conduz-nos inevitavelmente à conclusão da inviabilidade do Estado português, se os governantes insistirem em prosseguir uma política que conduz a um agravamento sistemático e progressivo da dívida pública.

Hoje, 2 de Outubro de 2010, ainda não tinha amanhecido, às 5h57, a divida bruta das administrações públicas gerada nesse dia era de cerca de 97 milhões de euros e a receita fiscal de apenas 24 milhões, crescendo uma e outra a ritmos vertiginosos. Passadas cinco horas, quando acordei, às 10 da manhã, a divida acumulada ultrapassava dos 247 milhões e a receita fiscal era de pouco mais de 61 milhões

Às mesmas horas, a despesa pública (do dia) com a saúde e a educação (somadas) não ultrapassavam os 12 milhões de euros e os 27 milhões, respetivamente.

O stock da dívida direta do Estado, que em 1980 era de apenas 2,3 mil milhões de euros subiu, em final de 2009 para 132 mil milhões, passando de 30% do PIB para 81% .

As receitas fiscais, que representavam apenas 9,8% do PIB em 1974, subiram para 12,2% em 1980 e para 20,3% em 2007.

Em 1980, as receitas fiscais representavam 12,2% e a divida direta do Estado representava 30% do PIB. Em 2007, as receitas fiscais representavam 20,3% do PIB, a mesma dívida representava 69,2%.

Uma análise, mesmo que superficial, das contas públicas demonstra que o Estado não tem capacidade, sequer, para pagar os juros e que uma boa parte dos empréstimos contraídos são amortizados não com receitas obtidas pela administração mas com novos empréstimos que, capitalizando os juros não pagos agravam o montante da dívida e dos seus custos, tornando-os insustentáveis.

Em 31 de Agosto de 2001, a dívida pública era de 69.293 milhões de euros. Em 31 de Agosto de 2010, era de 146.999 milhões de euros, ou seja, mais de o dobro.

No dia 2 de Outubro de 2010, às 5 da manhã, a população portuguesa residente no Continente e nas Ilhas era de 10.664.134 habitantes. Não se sabe qual era o montante da dívida pública a essa hora. Mas se tomarmos em consideração os valores de 31 de Agosto de 2010, cabe a cada português um calote de 13.784,43 €.

Este número não seria dramático, mesmo que para a divisão tenham contado velhos, desempregados e crianças, incluindo as que nasceram até às 5 da manhã daquele dia. Se todos os portugueses ganhassem um salário mínimo teriam que trabalhar (todos) pouco mais de 29 meses para pagar a dívida pública. Mas Portugal tem cerca de 590 mil desempregados e a população ativa não ultrapassa os 5.587.000 cidadãos, pelo que a dívida pública per capita ( considerando estes ativos) seria de 26.309,49 €, correspondente a quase 55 meses e meio de salário mínimo.

Um Estado que deixa chegar a situação das suas finanças a este ponto não pode, naturalmente, merecer a consideração dos credores e caminha a passos largos para o abismo.

Não se conhecem os números dos últimos seis meses, mas as notícias que vem sendo publicadas indicam que a mesma se degradou de forma grave, tendo afetado de forma grave o crédito do Estado, que tem dificuldade em encontrar recursos nos mercados e afetando, de forma quiçá mais grave, o crédito do sistema financeiro nacional, cujos recursos são alocados em boa parte ao financiamento da dívida pública.

O Estado está à beira da insolvência, essencialmente, porque não consegue gerar receitas que lhe permitam solver os custos do seu funcionamento, entre os quais os custos financeiros da dívida.

Mas, mais grave do que isso, é o facto de as perspetivas que se anunciam poderem bloquear a economia, com consequências gravíssimas na redução das receitas fiscais e no agravamento da falta de competitividade das empresas portuguesas.

Este desequilíbrio das contas públicas reduz, pela sua própria natureza, os recursos públicos necessários ao cofinanciamento de projetos apoiados pela União Europeia, à perda das comparticipações comunitárias e à eliminação de vetores essenciais à criação de condições de competitividade das empresas portuguesas.

Mas tem outra implicação bem mais grave, que reside na transformação da dívida pública num negócio especulativo que anula a função creditícia dos bancos por relação às empresas privadas, impedindo o seu funcionamento por falta de recursos e contribuindo para a destruição do capital industrial acumulado no país e que pode, a breve prazo, ser condenado à transformação em montanhas de sucata.

Por isso mesmo me parece que a solução não é resolúvel com paliativos, ou seja sem medidas drásticas que anulem toda a despesa pública inútil ou simplesmente dispensável e moldando o Estado à dimensão dos seus recursos, por aplicação de regras aplicáveis às situações de insolvência, que o próprio Estado até já definiu para regular a situação das empresas em situação difícil.

Claro que é dramático ter que despedir funcionários públicos. Mas não é dramático despedir empregados de empresas privadas? Qual a razão que justifica que a uns seja garantido o emprego, que não tem viabilidade e os outros são condenados à perda do trabalho, compensada por uns magros meses de subsídio de desemprego.

Quanto mais tarde forem tomadas as medidas necessárias, mais dramática será a situação, podendo, inclusivamente fazer-se perigar a própria existência do regime democrático.

Há centenas de serviços públicos, que consomem milhões de euros e que podem, pura e simplesmente, ser encerrados sem que daí venha algum mal ao mundo. Há milhões de euros de subsídios que podem ser cortados sem que o país perca alguma coisa, com a vantagem de, com isso, se reforçar a responsabilidade da sociedade civil. Há milhões de euros que se despendem com consultores e que podem ser poupados, se se aproveitarem os recursos de que o Estado dispõe. Só para dar um exemplo, não se justifica que todos os serviços públicos tenham juristas e que o Estado gaste por ano mais de 500 milhões de euros por ano com advogados, quando a defesa dos seus interesses podia e devia ser feita pelos seus próprios quadros técnicos.

Meter a cabeça na areia poderá servir agora para proteger as clientelas partidárias; mas é um risco demasiado elevado, porque pode destruir a função dos próprios partidos por via de um autismo insensato que parece que os afeta a todos.

Falando todos - aliás com unanimidade e forte verve, de patriotismo - porque não se entendem todos no sentido de devolver a dignidade à política, renunciando aos privilégios com que a eles próprios se prendaram e atribuindo-se a si próprios o salário mínimo nacional, no respeito pelo princípio da igualdade dos cidadãos a quem fixaram o valor vigente?

A classe política anda a gerar, há anos, os fundamentos da sua auto-destruição por duas vias. Em primeiro lugar pela falta de ideias e pela falta de capacidade para criar soluções, que compra, umas e outras a em concursos públicos ou consultorias privadas, que depois assume como suas. Em segundo lugar, pela adoção de soluções que são desastrosas, de um ponto de vista financeiro e que conduzirão, inevitavelmente, ao colapso cujas responsabilidades lhe haverão de ser imputadas.

Os problemas agravar-se-ão, de forma gravíssima, no momento em que a capacidade de financiamento do país não for suficiente para comprar e pagar os alimentos de que dependemos para viver.

A ganância do Estado conduziu à concentração da distribuição em meia dúzia de grupos económicos, como via adequada a controlar a tributação do consumo. Este fenómeno inviabilizou a pequena agricultura de subsistência e destruir a habilidade da terra para produzir alimentos no curto prazo, para além de ter, literalmente, apagado os conhecimentos acumulados, durante séculos, em matéria de agricultura e pecuária.

Num quadro de rotura dos fornecimentos de alimentos, que pode verificar-se quando não tivermos dinheiro nem crédito para comprar ao estrangeiro o que produzimos, não será viável repor em funcionamento uma agricultura e uma pecuária de subsistência, pelo que a fome será inevitável.

Os mais novos e os mais aventurosos sairão do país, como sempre fizeram os portugueses em tempos de fome. Mas os velhos e os que o não puderem fazer passarão muito mal.

Tudo se não houver tino e não se inverterem os caminhos traçados pelos políticos e pelos banqueiros, para quem a dívida pública se transformou numa mina, antes de se transformar num projeto de poder.