domingo, outubro 24, 2010

Uma fuga para a frente muito perigosa

Em Março de 2010, o eurodeputado David Campbell, do partido britânico Independence Party sustentava que a implosão da dívida pública dos chamados PIGS - Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha - poderia provocar o colapso do euro e criar uma crise sem precedentes na União Europeia e na Zona Euro.

Ninguém lhe deu importância, porque ninguém acreditou que a situação fosse tão grave. A propaganda de todos os países da EU era no sentido de que a Europa estava de boa saúde, cabendo a culpa de tudo aos americanos e às suas políticas de proteção das engenharias de subprime.

À medida que passou o tempo, todos fomos concluindo que as coisas não só não estavam tão boas como não eram tão claras como o revelava a imprensa económica.

Uma das mais importantes características da União Europeia – e sobretudo da União Monetária é a sua opacidade. Para chegar a essa conclusão basta visitar o site do Banco de Portugal, onde podem encontrar-se inúmeras explicações sobre o sistema estatístico sem que, porém, alguém tenha acesso ao mesmo.

Se a transparência existisse, provavelmente não teríamos assistido aos casos BPP e BPN que continuam mais cada vez se afiguram mais obscuros

O tipo de discurso adotado pelos agentes políticos e por representantes do setor financeiro denota uma grande preocupação de encontrar no parlamento a legitimação para a expansão da dívida pública, o mais rapidamente possível.

Mais importante do que a elevação da carga fiscal, que gerará uma receita adicional muito reduzida – e insuficiente, sequer, para tapar o buraco aberto no tesouro nacional com os apoios à banca e a assunção de responsabilidades relativamente ao BPN e ao BPP, todos os agentes se movem no sentido de criar condições para elevar a divida pública em mais de 75.000 milhões de euros.

O que seria razoável era parar, apurar e esclarecer o país acerca do montante efetivo da dívida pública e planificar o seu pagamento.

O que se pretende fazer é, ao invés, aumentar a dívida de forma brutal e absolutamente insustentável, adiando a resolução dos problemas e conduzindo o país a uma situação de falência inevitável.

O Estado assumiu a função do explorador capitalista que tem um protótipo definido nos velhos manuais da teoria marxista, como se pretendesse reciclar a teoria à l’envers.

É ele, hoje, o verdadeiro explorador da classe operária e do povo, agindo em defesa dos exclusivos interesses das suas clientelas partidárias e do sistema financeiro, que com ele se confunde.

Para isso – e para que o sistema não entre em rotura imediatamente – procura influenciar o funcionamento da economia de forma absolutamente insustentável, por via da despesa pública.

O desemprego aumentou vertiginosamente. E o Estado, em vez de criar condições para a criação de emprego, propõe-se gastar milhões de euros em formação profissional que, permitindo embora influenciar a estatística das qualificações, nenhuma repercussão tem na criação de riqueza, pela simples razão de que os formandos não encontrarão emprego e, por isso mesmo, estarão impedidos de produzir.

O que, por regra, deveria ser uma despesa de investimento é um mero subsidio, que nenhum resultado produzirá, para além do crescimento da dívida pública.

De outro lado, propõe-se o Estado desenvolver gigantescos planos de modernização das escolas e demais edifícios públicos, sem que o possa fazer com fundos decorrentes das receitas fiscais e recorrendo, mais uma vez ao endividamento.

A justificação para estas medidas é a de que é obrigação do Estado manter os níveis do emprego e da atividade económica. Mas isso é, no quadro atual, um enorme paradoxo, pois que tanto o emprego como a atividade económica em que redundam estas atividades são negativas, pela simples razão de que agravam o défice público.

O desplante vai ao ponto de se contabilizarem ações de formação por valores exorbitantes, quando muitas delas poderiam ser desenvolvidas por quadros que estão no desemprego e que, com um pequeno suplemento, se disporiam a prepará-las e a desenvolvê-las, em vez de suportar a ameaça de serem condenados a limpar as florestas.

Claro que essa solução não interessa aos titulares dos interesses envolvidos, a quem a crise oferece um negócio que é tanto mais interessante quanto é certo que ninguém os criticará pela qualidade da formação, uma vez que ela acabará por nunca ser testada na prática, porque não existem, nem se perspetivam no curto prazo os empregos a que se destinariam os formandos.

Quanto às obras, o que temos visto é que, para além de serem adjudicadas, em boa parte, por ajuste direto, têm, por regra, orçamentos de valores bem superiores aos correntes no mercado, como se em todas estivesse prevista uma comissão para quem as encomendou ou como se a simples formulação das encomendas fosse coisa tão trabalhosa que justificasse reduzir tal trabalho por via dos aumentos de preço, pois que quanto maior é o preço mas rapidamente se esgota a verba.

O que a atual situação portuguesa justificava é que se reduzissem todas as despesas inúteis, de forma a que a economia pudesse ganhar no curto prazo vantagens competitivas.

E o que se vai fazer é precisamente o contrário. A carga fiscal vai ser de tal ordem que uma boa parte dos nossos quadros ameaça deslocar-se para o estrangeiro e as empresa vocacionadas para a exportação chegarão a breve prazo à conclusão de que tanto o quadro fiscal como os riscos de perturbação social justificam a deslocalização para outros países.

Mesmo que o governo conceda benefícios fiscais ao investimento é prudente para os investidores moldar os seus projetos em termos que lhes permitam abandonar o país quando cessarem os apoios, porque os números atualmente conhecidos não permitem extrair nenhuma conclusão relativamente à inversão do ritmo de endividamento e ao progressivo agravamento da carga fiscal, até que se chegue a um ponto insustentável de rotura.

A falta de liquidez e a dificuldade de encontrar financiamentos no mercado internacional assumiu uma natureza crónica e pode ter consequências dramáticas.

Se é certo que no atual momento ainda poderia encarar-se a hipótese de despedimentos apoiados no setor público, o adiamento de medidas nessa área pode conduzir a que, dentro de pouco tempo, eles tenham que ser processados sem qualquer compensação, por inexistência de recursos, lançando o país numa situação de insustentável turbulência.

E tudo isto se vai desenvolvendo sem que se incentive a população a criar quadros de independência alimentar. Bem pelo contrário, o que o governo português projeta, como último recurso, num quadro algo sinistro – tão sinistro que pode acabar numa guerra – é o confisco das propriedades rurais, quiçá para as vender a empresas de países mais desenvolvidos.

A proposta de re-estruturação fundiária contida na proposta de lei do orçamento do Estado não é mais do que um projeto de confisco das terras que foram abandonadas pelos pequenos agricultores, cuja agricultura foi destruída pelas políticas dos sucessivos governos, a começar pelas do Dr. Cavaco Silva, mais apostados em criar circuitos de distribuição assentes nas grandes superfícies do que em manter a qualidade de vida das populações rurais, que colocaram em situação de completa miséria.

Este quadro não é apenas um quadro português. Com algumas diferenças, ele afeta todos os PIGS, a benefício de uma política agrícola que apenas favorece os interesses franco-alemães.

Parece-nos que esta fuga para a frente, em vez de se encarar a realidade com verdade e com frieza, pode ser muito perigosa, especialmente se não se tomaram iniciativas que permitam a geração de riqueza, seja por via do desenvolvimento de um quadro de autossubsistência alimentar, indispensável em quadros de falta de recursos para pagamento das importações ao estrangeiro, seja por via do comércio de intermediação, para o qual Portugal tem especiais competências, se incrementar as suas relações com os países emergentes e não tiver medo de se transformar na porta privilegiada para a entrada de produtos brasileiros, chineses e indianos na Europa.

Se todos os PIGS não desenvolverem esforços semelhantes e se os países mais desenvolvidos não os tomarem em consideração, se continuar, na falta de alternativa a crescer a dívida pública, todos podemos ir ao fundo. Mas talvez aí se cumpra a profecia de David Campbell e também se afunde o euro, com um lote de bancos que, apostados no negócio da divida, serão arrastados por ela.