terça-feira, maio 31, 2011

XENOFOBIA RELATIVAMENTE AOS PORTUGUESES DA ÍNDIA

O tratamento dado pelo governo português aos cidadãos portugueses residentes na Índia é absolutamente inaceitável, à luz da Constituição e das leis da República.

A Índia é conhecida como a terra dos elefantes. Mas é Portugal quem se tem comportado, aos longo dos últimos 50 anos, como um elefante numa loja de porcelanas, no modo como trata o que lhe sobrou de um presença histórica mais longa que a que teve no Brasil.

Lastimavelmente, após uma descolonização que podemos, apesar de tudo,  considerar exemplar, é relativamente aos portugueses do antigo Estado da Índia (que não aos do Brasil, de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Macau ou Timor) que Portugal afirma inaceitáveis complexos coloniais.

Tal facto constitui um inaceitável paradoxo, a vários títulos.

A presença portuguesa na Índia é anterior e foi mais duradoura que a presença portuguesa no Brasil.

Os portugueses chegaram a Cochim em 1498 e só saíram de Goa, Damão e Diu em 1961, com a ocupação desses territórios pelo exército da União Indiana, a culminar um período de mais de 13 anos, em que o governo de Nehru tentou encontrar uma saída negociada para a integração do Estado da Índia na novel república, encontrando uma completa resistência de Oliveira Salazar.

Antes mesmo das diligências diplomáticas encetadas por Nehru, Mahatma Ghandi tinha sugerido, numa carta a Salazar, que concedesse a independência ao território, que é hoje o estado mais desenvolvido da República da Índia.

O Estado da Índia teve o fim que teve  e que era previsível, tanto mais que está hoje provado que a ocupação militar contou com o apoio de todas as grandes potências. Mas o processo de descolonização das demais possessões ultramarinas poderia ter sido completamente diferente e muito menos acidentado do que foi, se ali se tivesse iniciado um processo de descolonização negociada.

A embirração do velho ditador custou – e paradoxalmente continua a custar – demasiado caro a todos os portugueses, inclusive aos portugueses da Índia.

Quebrou-se, com os incidentes de 1961, uma relacionamento secular que todos (portugueses e indianos) tínhamos interesse em prosseguir e gerou-se um quadro de desconfiança que causou enormes prejuízos a ambas as nações e que ainda não está ultrapassado.

A língua francesa continua pujante no Pondichery, aonde os franceses chegaram 175 anos depois de Vasco da Gama ter tocado a costa do Industão. Porém, quando começaram os incidentes nos enclaves portugueses de Dadrá e Nagar Haveli, em 1954, eles iniciaram negociações com os indianos e entregaram-lhes, de facto, os seus territórios, em 1954, acabando a Assembleia Nacional francesa por ratificar a transferência dos territórios em 1963.

Poderíamos e deveríamos ter feito o mesmo e a língua portuguesa não teria sofrido o rombo que sofreu, falada à sucapa e em silêncio apenas em casa dos vencidos.

Em 31 de Dezembro de 1974, Portugal, representado por Mário Soares, assinou com a Índia um tratado pelo qual Portugal reconheceu a integração dos territórios de Goa, Damão e Diu na República da Índia, prometendo mutuamente os estados consolidar relações de amizade e cooperação, nomeadamente nas áreas da cultura e da preservação do património. Mas, em boa verdade, muito pouco se fez nesse sentido e, sobretudo, no sentido de valorizar uma comunidade de pessoas que, integrada embora na grande nação indiana, continuava a sentir uma especial ligação a Portugal.

Os militares, que estiveram no poder em Portugal em 1975 e conheciam bem as características desse povo, tiveram o cuidado de garantir que os descendentes até à terceira geração de cidadãos nascidos no antigo Estado da Índia, as suas mulheres e as suas viúvas, residentes nas colónias, que nesse ano ganharam a independência, não perderiam a nacionalidade portuguesa.

No que se refere aos cidadãos nascidos no antigo Estado da Índia, que eram portugueses, nos termos da Lei nº 2098, de 29 de Julho de 1959 e da Lei nº 2112, de 17 de Fevereiro de 1962, tinham a nacionalidade portuguesa originária os que nasceram antes da entrada em vigor do tratado de 31 de Dezembro de 1974, ou seja antes de 3 de Junho de 1975.

Apesar de a República da Índia não admitir a dupla nacionalidade, o governo de Nova Delhi concedeu a nacionalidade indiana aos portugueses residentes naqueles territórios, sem exigir que renunciassem à nacionalidade portuguesa. E paulatinamente essa gente foi inscrevendo o seu nome no registo civil português, passando os filhos, depois da entrada em vigor da nova Lei da Nacionalidade, a requerer a atribuição da nacionalidade portuguesa.

Até aqui não se verifica nenhuma anormalidade.

O que os filhos dos portugueses da Índia fazem é o mesmo que fazem os do Brasil, dos Estados Unidos, do Canadá ou do Luxemburgo.

A grande diferença reside no facto de aos cidadãos que residam na área de jurisdição do Consulado Geral de Portugal em Goa não ser possível requisitar um cartão de cidadão.

Apesar de este consulado ser um dos mais importantes que Portugal  tem em todo o Mundo – atenta a importância da comunidade portuguesa da Índia – não foi o mesmo equipado para receber requisições de cartão de cidadão.

A lista dos postos consulares em que é possível requisitar o cartão de cidadão abrange hoje consulados e vice-consulados muito menos importantes. Aliás, na Índia, é possível requisitar o cartão de cidadão na secção consular da Embaixada de Portugal em Nova Delhi que, porém, não aceita pedidos de cidadãos residentes no antigo Estado da Índia.

A falta de instalação do equipamento necessário para o processamento do cartão de cidadão em Goa é, já por si, um ato de discriminação, que é atentório não só da dignidade destes cidadãos, mas também da nossa História comum, que Portugal tudo tem feito por apagar, discriminando negativamente os habitantes daqueles territórios, por relação aos de outras antigas  possessões coloniais, como é o caso de Angola, Moçambique e Macau.

A situação é, porém, mais grave do que aparenta.

É que, se esses cidadãos quiserem deslocar-se a Lisboa para, a expensas suas, requisitarem o seu cartão de cidadão, as autoridades consulares portuguesas na Índia não emitem em seu nome um título de viagem única, que é indispensável para saírem do país.

Não foi – nem é ainda – fácil o caminho dos portugueses da Índia.

Em razão da teimosia do Dr. Salazar, que tornou inevitável a ocupação militar do Estado da Índia, em Dezembro de 1961 (com o apoio tácito de todas as grandes potências, inclusive os Estados Unidos e o Reino Unido) gerou-se na região um confronto entre nacionalismos, que só os prejudicou e que deixou profundas sequelas.

A escolha da nacionalidade portuguesa (e a implícita renúncia à nacionalidade indiana) foi facilitada pela Índia, por via da criação do estatuto especial das pessoas de origem indiana (PIO). Mas ainda há fantasmas, que tornam essa opção difícil e que exigem uma especial proteção dos nossos concidadãos, em vez de, ao contrário, as autoridades portuguesas os colocarem numa situação incómoda, como é a de serem transformados em estrangeiros, com situação ilegal na terra em que nasceram.

E tudo isso apenas porque, logo que adquiram a nacionalidade portuguesa, são obrigados pela lei indiana a registar-se como estrangeiros (PIO) e a entregar o passaporte indiano, sob pena de ficarem numa situação de ilegalidade.

Só isto justificava que Goa tivesse sido o primeiro consulado da rede a dispor de um equipamento para o processamento do cartão de cidadão. Mas não tendo isso possível, justifica que, ao menos, querendo eles deslocar-se a Portugal para obterem os seus documentos de identificação, o nosso consulado lhes entregasse um título de viagem que lhes permitisse ultrapassar rapidamente a situação de quase cativos em que se colocam quando optam pela nossa bandeira.

É, literalmente, uma vergonha. Vergonha maior porque é marcada por um insulto à História e um ferrete xenófobo que os luso-indianos não merecem.



31/05/2011