terça-feira, outubro 25, 2005

Comentário à Lei Orgânica nº 5/2005, de 8 de Setembro

REDUZIDOS DRÁSTICAMENTE OS DIREITOS ELEITORAIS DOS PORTUGUESES RESIDENTES NO ESTRANGEIRO




A Lei Orgânica nº 5/2005, de 8 de Setembro veio alterar muito profundamente a amplitude dos direitos políticos dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro.
Se não forem funcionários do Estado, professores ou cooperantes, os portugueses residentes no estrangeiro que sejam bi-nacionais e que residam no país da segunda nacionalidade perdem o direito de eleger o Presidente da República.
Os que não se recensearam e deixaram de residir em Portugal há mais de 15 anos, na hipótese de residirem num país da União Europeia, ou há mais de 10 anos, na hipótese de residirem noutro país perdem a capacidade de se inscrever no recenseamento.
Estas alterações podem vir a bloquear as próximas eleições presidenciais, se os votos da emigração forem relevantes para a definição do vencedor. É que tudo indica que não haverá condições para até às próximas eleições riscar dos cadernos eleitorais os milhares de portugueses que deixam de ser eleitores do Presidente da República, por serem bi-nacionais.
Ao contrário do que foi afirmado no debate parlamentar, não foi alargado o universo dos eleitores do Presidente da República. Bem pelo contrário, foi substancialmente restringido.
Mais do que as questões jurídicas, o que releva desta alteração legislativa é a vitória de uma tendência, inspirada pelo ex-Ministro da Reforma Administrativa Alberto Martins, que visa, em termos estratégicos, a eliminação das comunidades portuguesas no exterior e a sua diluição das comunidades de acolhimento.
Esta mesma estratégia parece ser sufragada pelo governo de José Sócrates e especialmente pelo seu ministro Pedro Silva Pereira, que se afirmou no recente debate sobre a alteração à Lei da Nacionalidade como um estrénuo defensor do jus soli.
Parece-nos que é preciso valorizar o jus soli, tomando em consideração a situação dos imigrantes, nomeadamente dos que arrastam uma apatridia que deriva do processo de descolonização. Mas parece-nos, também, que é indispensável repensar a Nação no quadro da sociedade global e tomando em consideração as posições políticas que, nos últimos trinta anos criaram expectativas aos portugueses que emigraram e continuam a emigrar.
O direito que deve encontrar expressão nas leis não sobrevive como tal sem seriedade política, sem o respeito pelas legítimas expectativas criadas aos cidadãos.
O legislador não legitima a sua acção esfaqueando pelas costas aqueles a quem o Estado criou determinadas expectativas.
O discurso partidário e governamental dos últimos trinta anos aconselhou os portugueses residentes no estrangeiro a intervir nas sociedades de acolhimento por todos os meios, como forma de valorização das comunidades portuguesas existentes nesses países e sem prejuízo da sua pertinência à comunidade portuguesa.
Há milhares de portugueses com duas cidadanias e com os pés em dois países. O que agora se vem dizer é que esses portugueses, são portugueses de segunda. E o que alguns já anunciam é que os seus filhos, desde que não nasçam em Portugal serão apenas estrangeiros.
Estamos perante uma inversão completa de políticas e de valores, regressando à lógica do jus soli puro e duro vigente na ditadura. Só falta que alguém volte a dizer que os portugueses só viajam quando o Estado os autorizar…



A Lei Orgânica nº 5/2005, de 8 de Setembro, veio introduzir alterações muito profundas na eleição do Presidente da República. A Lei em causa começa por ser de interpretação difícil nalguns dos seus preceitos. Ela constitui um instrumento de alteração do regime de eleição do Presidente da República, instituído pelo Decreto-Lei nº 319-A/1976, de 3 de Maio.
Esse diploma foi sucessivamente alterado pelo Decreto-Lei Nº 377-A/1976, de 19 de Maio, Decreto-Lei Nº 445-A/1976, de 4 de Junho, Decreto-Lei Nº 456/1976, de 8 de Junho, Decreto-Lei Nº 472-A/1976 e Decreto-Lei Nº 472-B/1976, de 15 de Junho, e Decreto-Lei Nº 495-A/1976, de 24 de Junho, pela Lei Nº 45/1980, de 4 de Dezembro, e Lei Nº 143/1985, de 26 de Novembro, pelo Decreto-Lei Nº 55/1988, de 26 de Fevereiro, e pela Lei Nº 31/1991, de 20 de Julho, Lei Nº 72/1993, de 30 de Novembro, Lei Nº 11/1995, de 22 de Abril, Lei Nº 35/1995, de 18 de Agosto, e Lei Nº 110/1997, de 16 de Setembro, pela Lei Orgânica Nº 3/2000, de 24 de Agosto, e pela Lei Orgânica Nº 4/2005, de 8 de Setembro.
No mesmo dia, o DL nº 319-A/1976, de 3 de Maio, sofreu alterações decorrentes de dois diplomas: a Lei Orgânica nº 5/2005, que contém o essência da matéria a que nos referiremos neste artigo e a Lei Orgânica nº 4/2005, que alterou o artº 11º, reduzindo de 80 para 60 dias o prazo para a marcação das eleições.
Originariamente, de 1976 a 1997, o Presidente da República era eleito apenas pelos portugueses residentes no território nacional.
O texto constitucional do, então artº 124º da Contituição, tinha o seguinte conteúdo:
«1 - O Presidente da República é eleito por sufrágio universal, directo e secreto dos cidadãos portugueses eleitores, recenseados no território nacional.2 - O direito de voto é exercido presencialmente no território nacional.»
Os residentes no estrangeiro, quando visitados por autoridades da metrópole, argumentavam, justamente que não havia um Presidente de todos os portugueses, porque não lhes era dado participar nas eleições.
Na revisão constitucional de 1997, a matéria passou a ser regulada pelo artº 121º, que foi alterado e passou a dizer o seguinte:
«1 - O Presidente da República é eleito por sufrágio universal, directo e secreto dos cidadãos portugueses eleitores recenseados no território nacional, bem como dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro nos termos do número seguinte.2 - A lei regula o exercício do direito de voto dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, devendo ter em conta a existência de laços de efectiva ligação à comunidade nacional.
3 - O direito de voto no território nacional é exercido presencialmente.
Remeteram os revisores constituintes para um conceito cujo conteúdo não foram capazes de definir – o dos laços de efectiva ligação à comunidade nacional.
Sem que fosse possível encontrar consenso para elaborar uma lei, declarou-se administrativamente que, para efeito das eleições presidenciais, se consideravam com efectiva ligação à comunidade nacional os portugueses que estivessem recenseados até 31 de Dezembro de 1996[1].
O assunto foi retomado com discussão da Lei Orgânica nº 3/2000, de 24 de Agosto, que se propôs alterar o Decreto-Lei nº 319-A/1976, de 3 de Maio, que veio fixar o texto do artº 1º do Decreto-Lei nº 319-A/1976, de 3 de Maio, a que doravante chamaremos Lei Eleitoral do Presidente da República (LEPR) nos termos seguintes:
«São eleitores do Presidente da República os cidadãos portugueses recenseados no território nacional e os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro que se encontrem inscritos nos cadernos eleitorais para a eleição da Assembleia da República á data da publicação da presente lei.»
O texto é da Lei Orgânica nº 3/2000, de 24 de Agosto e não do diploma originário. Trata-se de uma má técnica legislativa (a que eu chamo a técnica do branqueamento) pois que se confunde o leitor da lei seca insinuando-lhe a ideia de que o regime estabelecido o foi na data da publicação do primeiro diploma.
Apesar de o diploma originário, em que foram feitos os sucessivos enxertos, remontar a 1976, ninguém ousou interpretar o dispositivo do artigo 1º com o sentido de que só seriam eleitores, entre os portugueses residentes no estrangeiro, aqueles que estivessem inscritos nos cadernos eleitorais na data do diploma originário.
Passaram a ser eleitores do Presidente da República os cidadãos portugueses residentes no estangeiro, desde que inscritos nos referidos cadernos eleitorais até 24 de Agosto de 2000.
Passaram cinco anos e a Lei Orgânica nº 5/2005 veio manter o essencial do ponto mais perverso do regime e criar novos mecanismos de restrição dos direitos dos portugueses residentes no estrangeiro no tocante à eleição do Presidente da República.
De uma análise mais cuidada dos diversos diplomas que regularam a matéria é forçosa a contatação de que a a LO nº 5/2005 não veio alargar o universo eleitoral dos portugueses não residentes na eleição do Presidente da República. Bem pelo contrário, esta lei veio implementar todas as restrições que ficaram na gaveta no ano 2000, reduzindo, de forma muito substantcial esse universo eleitoral.
É muito interessante analisar, a propósito, o debate parlamentar realizado em 13 de Abril de 2000 e publicado no Diário da Assembleia da República nº 54 (fls 2167).

A nova redacção do artigo 1º da Lei Eleitoral do Presidente da República (LEPR) passou a ter o seguinte conteudo:
1 - São eleitores do Presidente da República os cidadãos portugueses recenseados no território nacional e os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro que se encontrem inscritos nos cadernos eleitorais para a eleição da Assembleia da República à data da publicação da presente lei.
2 - São também eleitores do Presidente da República os cidadãos portugueses recenseados no estrangeiro que preencham os requisitos seguintes:
a) Cuja inscrição tenha sido posterior à data referida no número anterior, mas efectuada por transferência de inscrição do território nacional ou de inscrição no estrangeiro anterior àquela data;
b) Cuja inscrição tenha sido, ou venha a ser, efectuada com a idade de 18 anos;
c) Tenham exercido o direito de voto na última eleição da Assembleia da República.
3 - São também eleitores do Presidente da República os cidadãos de outros países de língua portuguesa que residam no território nacional e beneficiem do estatuto de igualdade de direitos políticos, nos termos de convenção internacional e em condições de reciprocidade, desde que estejam inscritos como eleitores no território nacional.

A primeira dificuldade interpretativa deste excerto do diploma reside no seu nº 1.
O texto desse número 1 é rigorosamente igual ao texto da versão anterior, sendo certo que as alterações entretanto operadas no que se refere ao regime juridico do recenseamento eleitoral até justificavam que se alterasse o texto deste preceito em conformidade com tal regime.
Se o texto é o mesmo, poderia sustentar-se que o legislador pretendeu bloquear o acesso aos direitos eleitorais dos portugueses residentes no estrangeiro, mantendo-se a data de 24 de Agosto de 2000 como limite, tal como acontecia antes.
Se assim fosse, não se diria na Lei Orgânica nº 5/2005 que se alterava a disposição também no tocante àquele número 1, cujo texto é rigorosamente o mesmo que vigorou desde a publicação da Lei nº 3/2000.
Afirmando o legislador que se alterou o preceito e sendo o texto rigorosamente o mesmo, só pode entender-se que a alteração é atinente à data limite em que o facto de se ser eleitor da Assembleia da República confere ao cidadão, cumulativamente, o direito de eleger o Presidente da República.
Parece-nos que, dizendo-se que há uma alteração do preceito e sendo o texto rigorosamente o mesmo, a alteração se reporta ao conteudo temporal do preceiro e que, por isso, passaram a ser eleitores do Presidente da República os cidadãos portugueses que eram eleitores da Assembleia da República e que estivessem recenseados na data da publicação da lei reformadora, ou seja em 8 Setembro de 2005.
Não houve aqui nenhuma mudança substancial. Mudou-se apenas a data, sob pena de um dia destes não haver eleitores do Presidente da República entre os emigrantes.
Parece claro, todavia, que os portugueses residentes no estrangeiro que agora acorrerem a recensear-se – e os que se recensearam depois de 8 de Setembro de 2005 - não podem votar nas eleições presidenciais, excepto se tiverem 18 anos na data do recenseamento.
No debate parlamentar, a deputada Maria Carrilho lançou um veemente apelo ao recenseamento por parte dos emigrantes[2], o que levou algumas pessoas a pensar que, tendo em consideração o lugar e matéria que estava a ser discutida, esse apelo teria alguma coisa a ver com a participação nas eleições presidenciais. Só que a deputada se esqueceu de referir que, se os cidadãos quisessem votar nas próximas eleições presidenciais, deveriam recensear-se até á publicação da lei em discussão, sob pena de continuarem incapacitados.
A adição de um número 2 ao artigo 1º traz um valor acrescentado e uma norma de dificílima interpretação.
Entre o dia 8 de Setembro e a data limite para as alterações no recenseamento podem processar-se mudanças de residência no recenseamento tanto de Portugal para o estrangeiro como entre países diversos e a lei vem dizer que essas mudanças não afectam os direitos eleitorais de que os cidadãos eram titulares.
Novidade é, em chocante contraponto, com a denegação da capacidade eleitoral activa aos portugueses residentes no estrangeiro que procedam ao recenseamento depois de 8 de Setembro de 2005, a atribuição de tal capacidade aos que procedam ao recenseamento com 18 anos. Trata-se de um lado de uma punição e de outro lado de um prémio de constitucionalidade mais do que duvidosa, embora assente no demagógico argumento de que é necessário rejuvenescer o universo político dos eleitores do Presidente da República no estrangeiro.
De dificil interpretação é a alínea c) do nº 2.
Os eleitores que votaram nas últimas eleições para a Assembleia da República são eleitores do Presidente da República nos termos do artº 1º, nº 1. Para esses é irrelevante o disposto no número 2, alínea c).
Será que se pretendeu com este novo normativo dizer que são eleitores do Presidente da República os que tiverem votado nas eleições da Assembleia da República imediatamente antecedentes? Se assim for, os cidadãos que entretanto se increveram nos cadernos eleitorais podem votar nas eleições da Assembleia da República e, então, poderão votar também nas eleições presidenciais que se lhe sucederem imediatamente. Mas não adquirem por tal via a qualidade de eleitores do Presidente da República, pois que passam a pertencer a um subespécie que só vota nas eleições presidenciais se tiver votado nas eleições legislativas que antecederam aquelas.
Temos as mais fundadas dúvidas sobre o conteudo do nº 3, que atribui capacidade eleitoral activa aos cidadãos dos paises de lingua portuguesa residentes em Portugal que beneficiem do estatuto de igualdade de direitos políticos, nos termos de convenção internacional.
Parece-nos que o texto do artº 121º da Constituição, atrás citado, não permitia ir tão longe, nem sequer recorrendo ao critério do artº 8º, 2 da Lei Fundamental. O único país com quem Portugal estabeleceu um tratado de igualdade de direitos é o Brasil.
O Tratado de Porto Seguro, de 22 de Abril de 2000, estabelece no seu artº 12º que «os portugueses no Brasil e os brasileiros em Portugal, beneficiários do estatuto de igualdade, gozarão dos mesmos direitos e estarão sujeitos aos mesmos deveres dos nacionais desses Estados, nos termos e condições dos artigos seguintes». Porém o artº 14º é expresso no sentido de que se exceptuam «do regime de equiparação previsto no artigo 12º os direitos expressamente reservados pela Constituição de cada uma das Partes Contratantes aos seus nacionais».
A Constituição nada estabelece, de forma expressa, quanto à capacidade eleitoral activa no que se refere às eleições para a Assembleia da República, não havendo, por isso, nenhum obstáculo de natureza constitucional a que os colégios eleitorais integrem cidadãos estrangeiros. O mesmo não se verifica, porém, no que se refere à eleição do Presidente da República, que é uma prerrogativa dos cidadãos portugueses de origem (artº 122º da Constituição).
É interessante realçar, a propósito, que uma boa parte dos cidadãos que com esta lei perde a capacidade eleitoral activa têm capacidade eleitoral passiva, ou seja: não são eleitores do Presidente da República, mas podem candidatar-se a Presidente da República.
Nos termos do artº 122º da Constituição, «são elegíveis os cidadãos eleitores, portugueses de origem, maiores de 35 anos». Há cidadãos eleitores que são maiores de 35 anos e portugueses de origem e que, nos termos da nova legislação, não são eleitores do Presidente da República.

A Lei Orgânica nº 5/2005, adita à LEPR dois novos artigos, com o seguinte teor:

«Artigo 1º-A
Cidadãos em serviço ou em actividade de interesse público no estrangeiro

1 - São admitidos ao recenseamento eleitoral do Presidente da República os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro nas seguintes situações:
a) Titulares de órgãos da União Europeia e de organizações internacionais;
b) Diplomatas e outros funcionários e agentes em serviço em representações externas do Estado;
c) Funcionários e agentes das comunidades e da União Europeia e de organizações internacionais;
d) Professores de escolas portuguesas, como tal reconhecidas pelo Ministério da Educação;
e) Cooperantes, com estatuto como tal reconhecido pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros.
2 - São ainda eleitores do Presidente da República os cônjuges ou equiparados, parentes ou afins que vivam com os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro mencionados no número anterior, desde que preencham os requisitos previstos na presente lei.

Artigo 1º-B
Cidadãos residentes no estrangeiro

1 - São admitidos ao recenseamento eleitoral do Presidente da República os cidadãos portugueses residentes nos Estados membros da União Europeia ou nos países de língua oficial portuguesa que tenham deixado de ter residência habitual no território nacional há menos de 15 anos.
2 - Os cidadãos portugueses residentes nos demais Estados são igualmente admitidos ao recenseamento eleitoral do Presidente da República no caso de terem deixado de residir habitualmente no território nacional há menos de 10 anos.
3 - São também admitidos ao recenseamento eleitoral do Presidente da República, para além dos casos referidos nos números anteriores, os cidadãos portugueses que se tenham deslocado a Portugal e aí permanecido pelo menos 30 dias nos últimos cinco anos e tenham feito prova de conhecimento da língua portuguesa.»


Nos termos do artº 1º da Lei nº 13/99, de 22 de Março, o recenseamento eleitoral é oficioso (…) permanente e único para todas as eleições por sufrágio directo e universal e referendos.
É obrigatório para os portugueses residentes e facultativo para os não residentes. O recenseamento está ainda sujeitos às regras da unicidade, segundo a qual é único para todas as eleições por sufrágio directo e universal e actos referendários e da inscrição única, segundo a qual ninguém pode estar inscrito mais de uma vez no recenseamento (artºs 6º e 7º).
Parece-nos que as normas dos artºs 1ºA e 1º-B sofrem de dois vícios:
a) Contrariam a lógica intrínseca do regime jurídico do recenseamento eleitoral;
b) Deveriam constituir alteração à Lei nº 13/99, de 22 de Março, que regula o recenseamento eleitoral e não à Lei Eleitoral do Presidente da República.
Em bom rigor não há um «recenseamento eleitoral do Presidente da República»; há um recenseamento eleitoral para todas as eleições.
Comecemos pela análise do artº 1º-B.
Não é obra fácil, mas parece inequívoco que o que esta disposição estabelece é que não é admitido o recenseamento eleitorado dos seguintes grupos de cidadãos:
a) Dos que, residindo em países da União Europeia, tenham deixado de ter a sua residência habitual em Portugal há mais de 15 anos;
b) Dos que residindo em países que não são da União Europeia tenham deixado de ter a sua residência habitual em Portugal há mais de dez anos.
A dúvida que este normativo coloca é de saber se, sendo o recenseamento único, ele vem estabelecer uma definitiva incapacidade de inscrição no recenseamento aos portugueses que, residindo no estrangeiro, não tenham residência em Portugal, porque deixaram de residir no País, há mais de 15 anos, no caso de residirem em países da União Europeia ou de 10 anos no caso de residirem noutros países.
Esses cidadãos e os que são portugueses mas nunca residiram em Portugal só podem ser admitidos ao recenseamento desde que, cumulativamente provem que estiveram em Portugal mais de 30 dias nos últimos cinco anos e que façam prova do conhecimento da língua portuguesa.
Duas questões se suscitam no tocante à norma da al. c): a de saber como se faz a prova da permanência em Portugal por mais de 30 dias nos últimos cinco anos; e a de saber como se faz a prova do conhecimento da língua portuguesa.
No que se refere à primeira questão, parece-nos que a prova pode ser feita por qualquer meio em direito admissível. A um emigrante residente em França há 30 anos, que vem a Portugal todos os anos é obviamente difícil tal prova. Mas não o é menos a um outro que viva nos Estados Unidos ou no Canadá e que viagem com passaporte português, porque, como é sabido, as autoridades de fronteira não carimbam os passaportes dos nacionais.
No que se refere à prova do conhecimento da língua portuguesa parece que nos podemos socorrer do disposto no artº 15º, 4 do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Decreto-Lei nº 322/82 de 12 de Agosto, que estabelece o seguinte:
«A prova do conhecimento da língua portuguesa pode ser feita por uma das formas seguintes:
a) Diploma de exame feito em estabelecimento oficial do ensino português;
b) Documento escrito, lido e assinado pelo interessado perante notário português, com a menção destas circunstâncias no respectivo termo de reconhecimento da letra e assinatura;
c) Documento escrito, lido e assinado pelo interessado perante o chefe dos serviços consulares portugueses ou da secretaria da câmara municipal da sua residência, ou, em Lisboa e Porto, perante o director dos serviços centrais e culturais ou funcionário por ele designado, os quais atestarão esses factos no próprio documento, autenticando a sua assinatura com o selo oficial. »

Daqui resulta, de forma inequívoca, que um cidadão português que tenha emigrado há mais de 15 anos para um país da União Europeia ou de 10 para outro país e que seja analfabeto não pode, em definitivo, inscrever-se no recenseamento eleitoral excepto se fixar residência no País, pois que, em tais circunstâncias, só os analfabetos residentes no país têm direito de voto.
Uma coisa é o conhecimento da língua portuguesa. Outra coisa é literacia e alfabetismo.
Salvo melhor opinião o normativo do artº 1ºB, al. c) é ofensivo do princípiod a igualdade consagrado no artº 13º da Constituição. Não nos parece que possa o legislador condicionar o direito de voto nas eleições do Presidente da República à condição de saber ler ou não saber ler, admitindo que apenas os analfabetos residentes no país ou que se tenham inscrito há mais tempo possam votar nas eleições presidenciais.
O disposto no artº 1º- A constitui, no que tem de mais importante, uma excepção ao artº 1º-B e, sobretudo ao artº2º, 2 da LEPR que passou a ter a seguinte redacção:
(…)
«2 - Salvo o disposto no artigo 1º-A e artigo 1º-B da presente lei, não são eleitores do Presidente da República os cidadãos portugueses que, sendo também cidadãos de outro Estado, residam no respectivo território.»

Sinteticamente, passam a sofrer incapacidade passiva para eleger o Presidente da República os cidadãos portugueses que sejam também nacionais de outro Estado e residam no território desse Estado excepto se forem:
a) Titulares de órgãos da União Europeia e de organizações internacionais;
b) Diplomatas e outros funcionários e agentes em serviço em representações externas do Estado;
c) Funcionários e agentes das comunidades e da União Europeia e de organizações internacionais;
d) Professores de escolas portuguesas, como tal reconhecidas pelo Ministério da Educação;
e) Cooperantes, com estatuto como tal reconhecido pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros.
f) Cônjuges ou equiparados, parentes ou afins que vivam com os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro mencionados no número anterior, desde que preencham os requisitos previstos na presente lei.

Temos aqui um estranho fenómeno de discriminação positiva dos funcionários que sejam também estrangeiros e dos seus familiares e o mais violento ataque aos direitos dos cidadãos plurinacionais a que assistimos depois do 25 de Abril.
A LEPR estabelecia no artº 2º da versão anterior à Lei Orgânica nº 5/2005, de 8 de Setembro:
«Os portugueses havidos também como cidadãos de outro Estado não perdem por esse facto a qualidade de cidadãos eleitores.»

Este texto foi mantido, cinicamente, no nº 1 mas deixou de ter qualquer sentido, porque as situações de plurinacionalidade ocorrem sobretudo nos paises de acolhimento e decorrem, especialmente nos últimos anos, de políticas de incentivo à integração nesses países.
Se antes do 1981 a aquisição da nacionalidade dos países de acolhimento implicava a perda da nacionalidade portuguesa, depois de 1981, os diversos governos passaram a incentivar os emigrantes a integrar-se, em toda a plenitude nos países de acolhimento e a participar na sua vida política, realçando que isso não prejudicava a sua condição de portugueses.
Ainda recentemente um responsável político realçava esse valor lançando a ideia de uma confederação dos dirigentes políticos portugueses em países terceiros.
O que esta LO veio fazer foi esclarecer, em definitivo que os portugueses que forem binacionais e que residam no território do outro país de que são nacionais são portugueses de segunda, que não tem direito de voto no Presidente da República.
O mais chocante é que se esses cidadãos forem funcionários, professores, cooperantes ou pertencerem a alguma das categorias referidas no artº 1º-A, mantêm a capacidade eleitoral, o que se afigura como um absurdo.
Nos termos do artº 3º, 1, agora introduzido, sob a epígrafe de «incapacidades eleitorais» escreve-se que «não são eleitores do Presidente da República os cidadãos portugueses que tenham obtido estatuto de igualdade de direitos políticos em país de língua portuguesa, nos termos do nº 3 do artigo 15º da Constituição.».
Este eufemismo refere-se aos portugueses residentes no Brasil que são titulares do estatuto de igualdade de direitos estabelecido pelo acordo de Porto Seguro. Esses cidadãos tinham direito de voto, em conformidade com a lei anterior e estão agora afectados por uma incapacidade eleitoral activa, inserta, com extremo mau gosto no mesmo artigo em que se incluem os interditos por sentença com trânsito em julgado, os notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não estejam interditos por sentença, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos e os que estejam privados de direitos políticos, por decisão judicial transitada em julgado.
O Tratado de Porto Seguro, que é o único relevante nesta matéria, estabelece no seu artº 17º, 3: «O gozo de direitos políticos no Estado de residência importa na suspensão do exercício dos mesmos direitos no Estado da nacionalidade».
Escrevi, a propósito, num parecer recente, que pode ver-se em http://www.lawrei.com/defaultM4.asp?id=294:
«Uma tal suspensão de direitos não constitui uma incapacidade eleitoral, mas uma suspensão da capacidade eleitoral.
Ou seja: os cidadãos brasileiros residentes em Portugal, que gozem do estatuto de igualdade de direitos vêem suspensos os seus direitos eleitorais no Brasil, enquanto os portugueses que gozem do estatuto de igualdade no Brasil vêem suspensos os seus direitos eleitorais em Portugal.
Esta suspensão durará pelo tempo em que se mantiver o estatuto de igualdade de direitos, que pode ser revogado em qualquer das jurisdições a pedido do cidadão dele beneficiário.
A terceira conclusão que temos que extrair é a de que os cidadãos portugueses que sejam beneficiários do estatuto de igualdade de direitos no Brasil não gozam do direito ao sufrágio em Portugal, enquanto mantiverem esse estatuto.
Isso não significa, porém, que não possam e não devam recensear-se, nos termos do disposto no artº 4º, al. a) da Lei do Recenseamento Eleitoral (Lei nº 13/99, de 22 de Março).
Estes cidadãos podem recensear-se mas devem fazer menção da informação relativa à capacidade eleitoral activa, nos termos das disposições conjugadas do artº 12º, 2, al e) e do artº 50º da mesma lei. Logo que termine a suspensão acima aludida, será introduzida a devida alteração à BDRE[3][7].
As limitações a que agora aludimos respeitam apenas aos portugueses e aos brasileiros que são titulares do estatuto de igualdade, não podendo confundir-se com a situação dos que são binacionais.
Relativamente a estes não há qualquer restrição tanto no que se refere ao recenseamento como no que se refere ao direito de voto».
Era assim, mas deixou de ser, pelo que o estatuto da igualdade de direitos passou a ser fonte indirecta de uma incapacidade eleitoral.

[1] A Lei nº 13/99, de 22 de Março (Lei do Recenseamento Eleitoral) veio estabelecer o seguinte:
Artigo 42.º Inscrições no estrangeiro
«1 – As inscrições efectuadas em comissão recenseadora sediada no estrangeiro até 31 de Dezembro de 1996 são anotadas nos cadernos de recenseamento e na BDRE com a menção de «eleitor do Presidente da República».
2 – A qualidade de eleitor do Presidente da República permanece para os eleitores referidos no n.º 1 que em data posterior transfiram a sua inscrição para outras comissões recenseadoras do estrangeiro.
3 – Relativamente aos eleitores inscritos posteriormente a 31 de Dezembro de 1996, lei especial definirá as regras de atribuição da qualidade de eleitor do Presidente da República, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º da Constituição da República Portuguesa.»

[2] Disse então Maria Carrilho:
«É altura para se chamar a atenção para um facto: o fraco índice de inscrição nos cadernos eleitorais dos portugueses que se encontram a residir no estrangeiro e o baixo índice de participação nos actos eleitorais.Faço, portanto, um apelo, por um lado, às autoridades, às associações não governamentais e outras, para que promovam uma pedagogia do exercício de direitos e deveres próprios da cidadania e para que procurem modalidades para facilitar tal exercício e, por outro, aos cidadãos portugueses no estrangeiro para que participem nos actos eleitorais, para que votem, porque, independentemente dos candidatos em que votarem, o número de votantes é fundamental para dar mais peso às próprias reivindicações das comunidades portuguesas.»