quarta-feira, novembro 08, 2006

EDMUNDO PEDRO - MEMÓRIAS

«A minha amizade com a dona Rosa foi vivida próximo do fim do verão de 1933. Nessa altura, a minha actividade no plano sindical e político tinha-se intensificado, embora, por razões que adiante relatarei, tivesse assumido formas diferentes. Durante o tempo em que trabalhei no Arsenal, em resultado dos contactos secretos que mantive, ao longo de quase dois anos, com meus pais (sem que meus tios disso se apercebessem) e com alguns dos mais destacados quadros dirigentes do PCP, a minha formação política avançara rapidamente. Além de ser um elemento activo da célula juvenil daquela empresa estatal, tomara eu próprio a iniciativa de organizar, entre os estudantes da Escola Industrial Machado de Castro (quase todos jovens operários) uma célula da Juventude Comunista – célula que eu dirigia e animava. Estava, pois, empenhado numa actividade cujo ritmo e exigências eram cada vez maiores.
Aproximava-se o termo do ano que marcaria o fim de uma época do movimento operário português. A tensão, nos meios sindicais e políticos, crescia rapidamente. Vivia-se já a atmosfera febril que iria desembocar, meses depois, na tentativa de greve geral de 18 de Janeiro de 1934. Por meu lado, entrara num tal ritmo de actividade que, como era fácil de prever, me faria cair, a curto prazo, nas garras da polícia política.
Sem o apoio da dona Rosa ter-me-ia sido muito mais difícil, naquela fase cada vez mais exigente da luta em que me empenhara, desempenhar as inúmeras tarefas que me eram cometidas. Ela assegurara o funcionamento de um verdadeiro e eficaz depósito de trânsito para a imprensa clandestina que eu distribuía. Ao sair de casa, a caminho da escola ou da empresa, ela encontrava quase sempre maneira de me passar os manifestos ou outros documentos que escondera e que eu, na altura, lhe pedia.
Mas, por via de regra, o que é bom de mais, depressa acaba.
A minha tia, inopinadamente, e sem qualquer razão aparente, despediu a dona Rosa. Na altura, não me apercebi dos motivos que a levaram a tomar essa decisão. Ela viera pôr um ponto final numa relação que, a vários títulos, ficaria gravada na minha memória como um acontecimento marcante. Aquela senhora, para além da preciosa ajuda que me prestara, constituíra, durante algum tempo, um bálsamo importante numa existência que, desde os seis anos, fora marcada por um forte sentimento de abandono – sentimento para o qual a exigente e distante relação com a minha tia muito contribuíra. Esta adoptara, no seu trato comigo, o comportamento que considerava mais adequado para me proteger das "más influências", ou seja, das "companhias perigosas" – e para me conduzir àquele que ela pensava ser o "bom caminho". »