«Em seguida ao “18 de Janeiro” o “Pavel” radicou-se na URSS como representante do PCP junto da Internacional Comunista. Foi escolhido por Manuilsky, então secretário geral da Internacional Comunista, para seu secretário.adjunto.O alto cargo que então exercia na estrutura do Comintern implicava o estatuto de permanente. Mas a vida de um revolucionário era tudo menos uma vida estável...Estava sempre sujeita a repentinas mudanças de curso.
Durante anos segui, à distância, o seu extraordinário percurso. No Tarrafal, pouco mais de um ano depois de ter ali chegado, pudera acompanhar, em parte, pelos relatos do Gilberto de Oliveira e do Domingos dos Santos, recentemente regressados da União Soviética, a sua prodigiosa ascensão no âmbito da Internacional Comunista. O Florindo de Oliveira (“Spartaco”) tinha seguido para a URSS na companhia do Bento no fim de Julho de 1935. O Domingos dos Santos (“Calabrês”) e o Cunhal partiram pouco depois, em Agosto do mesmo ano. O “Spartaco” e o “Calabrês” foram detidos pouco depois do seu regresso da União Soviética e expedidos, sem mais delongas, para Cabo Verde.
Foi justamente o “Spartaco” que me transmitiu, quando chegou ao Tarrafal, a reacção de Cunhal quando, pela primeira vez, no verão de 1935, foi apresentado ao Pavel em Moscovo[1]. A sua extensa obra literária, que ia desde a ficção à crítica de arte – especialmente em matéria de pintura mural, de que o México se tornara num paradigma, de que foi considerado o crítico mais reputado – ficou bem patente nos reflexos que teve na cultura daquele país. O Estado mexicano, país da sua forçada adopção, dedicou-lhe uma homenagem nacional como reconhecimento do precioso contributo que deu à cultura daquele país.
Pavel tinha um enorme respeito pela cultura e pelo perfil do então secretário-geral do PCP, Bento Gonçalves, enquanto indiscutível representante da classe operária. E, também, de dirigente máximo dos comunistas portugueses. Consolidei a mesma opinião ao longo do estreito convívio que mantive com ele durante muitos anos.
Em 1938 tivemos conhecimento, no Tarrafal, da nova detenção do Pavel. O impacto desse acontecimento entre os prisioneiros comunistas foi enorme.
A continuação da guerra civil de Espanha tornara importante o papel de Portugal enquanto retaguarda, não só do fascismo espanhol, mas também do fascismo europeu, liderado pela Alemanha nazi. Para a União Soviética era extremamente importante a derrota do nazi-fascismo em Espanha ou, no mínimo, atrasar a sua vitória se esta se tornasse inevitável. Precisava de tempo para reforçar a sua economia e o seu exército. Era dali que provinha, para a URSS, o maior perigo.
A acção do Pavel no nosso país assumiu para a Internacional Comunista, naquela fase, uma relevância muito superior àquela que ele então desenvolvia na URSS.
Foi por isso compelido a deixar ali a mulher – a soviética com quem casara e de quem tivera um filho – e a regressar a Portugal para assumir aqui a direcção do PCP.
A prisão, no final de 1935, dos três membros do seu secretariado nacional – e, nomeadamente do seu secretário-geral, acabado de regressara da URSS – decapitara, num momento crucial, a direcção do Partido
O Pavel voltou a Portugal em 1937. É preso cerca de um ano depois. Embora a doença estivesse controlada, o facto é que continuava tuberculoso.
A polícia conhecia o historial da sua doença. A maior parte do tempo em que esteve preso quando, pela primeira vez, caiu nas malhas da polícia, passou-o, inicialmente, na enfermaria da prisão do Limoeiro. Por isso, no decurso da organização do processo, não foi agredido.
O Pavel assumiu as suas responsabilidades de dirigente comunista. Depois de encerrado o processo, foi enviado para a enfermaria do Aljube. Encontrou ali um ex-jovem comunista, o Augusto, que ele identificou como um antigo membro da Juventude Comunista, no período de1932/33, ou seja, durante a fase em que o Pavel exerceu o cargo de secretário-geral daquela organização.
O Augusto explicou-lhe que decidira concorrer àquele lugar com a intenção de, oportunamente, prestar um grande serviço ao Partido.
O Pavel, de início, desconfiou dos reais objectivos do Augusto. Submeteu-o, segundo me disse, a várias provas. Mas acabou por se convencer de que as suas intenções eram genuínas. Pô-lo em contacto com a direcção do PCP. E elaboraram, em conjunto, o plano de fuga.
A evasão, com o apoio logístico e operacional do Partido, foi bem sucedida. O Augusto, na companhia de outro prisioneiro, fugiu com o Pavel. Este prometera levá-los para União Soviética. Estava convencido de que, no seguimento da sua fuga, passaria ali algum tempo para se ressarcir do abalo que acabara de sofrer. Tinha lá a família. Era um quadro altamente prestigiado do movimento comunista internacional. A presunção de que aceitariam o seu regresso à Rússia, no caso da fuga ser bem sucedida, tinha todo o cabimento.
Não sei se a versão que o Augusto lhe apresentou correspondia ou não à verdade, ou seja, se ele procurara chegar àquele lugar com a deliberada intenção de, no momento oportuno, ajudar algum membro importante da direcção do Partido a evadir-se. Não procurei saber o que o Pavel pensava sobre este aspecto da sua extraordinária odisseia. Penso, aliás, que nem ele próprio estaria em condições de garantir que o Augusto fizera aquele complexo percurso unicamente inspirado pelas suas persistentes convicções ideológicas. Tudo o que se pode garantir é que o Augusto agiu, naquele caso concreto, como se a sua versão fosse verdadeira, ou seja, com inegável boa fé.
É provável que a história que contou não correspondesse à verdade. O ajudante de enfermeiro terá concorrido àquele lugar, não por se ter convertido em fascista, mas porque não arranjara outro emprego. É óbvio que, ao dar esse passo, revelara uma certa fraqueza de carácter. Mas não é difícil admitir que, apesar disso, tenha conservado as convicções ideológicas do tempo em que fora jovem comunista. O Pavel terá sido para ele, a certa altura da sua vida, o que foi como para muitos outros jovens. Ele representava, no nosso imaginário, o perfil do revolucionário exemplar, tanto pelo seu saber, como pela sua fascinante personalidade. Não admira que o Augusto tenha conservado, desde o seu tempo de jovem comunista, a admiração que sentia por ele.
O Pavel não me relatou os pormenores da organização da fuga imaginada, no essencial, pelo Augusto. Contou-me apenas os tópicos mais gerais. De qualquer modo, só o ligou ao Partido, com vista ao indispensável apoio logístico, depois de o submeter a várias provas destinadas a testar a seriedade das suas intenções. O Augusto saiu-se bem de todas. Adquiriu a certeza de que ele tinha um genuíno desejo de o ajudar a evadir-se. Contar-me-ia que depois da evasão ficaram ligados por laços de amizade de tal modo fortes que, quando se instalaram no México, partilharam diariamente o pequeno-almoço, até à morte do Augusto, ocorrida muitos anos depois! O Pavel tinha a profunda convicção de que o Augusto o salvara de uma morte quase certa.
Efectivamente, se não tivesse fugido, a polícia tê-lo-ia remetido, pouco depois, sem a menor dúvida, para o Tarrafal.
A fuga, permito-me insistir, foi preparada em estreita colaboração com a direcção do PCP. O médico Ludgero Pinto Bastos, que na altura pertencia ao secretariado nacional do PCP, desempenhou nela um importante papel. Tratou-o, nomeadamente, das feridas causadas nas mãos pela fricção na corda utilizada para chegar à rua.
[1] Penso que o juízo negativo que Cunhal manifestou nessa altura sobre Bento Gonçalves, quando comparado com o Pavel, reflecte o impacto que exerceu sobre ele, um brilhante intelectual, a personalidade de um ex-operário que se transformara, graças ao seu esforço e à sua excepcional inteligência, também ele num intelectual cujo nível seria eventualmente superior ao de Álvaro Cunhal. No juízo de valor que Cunhal fez de Bento Gonçalves não entraram as reais qualidades que o distinguiam como genuíno dirigente operário. Também este aspecto ajuda a compreender a personalidade de Cunhal enquanto dirigente comunista. Nomeadamente o sentido da hierarquia intelectual, e de menosprezo pelos operários, que está implícito nesta sua apreciação. E isto apesar de ter pretendido, na última fase da sua vida, ficar para a História como “um filho adoptivo da classe operária”... Cunhal teve uma permanente preocupação de cuidar da sua imagem como dirigente operário e como líder comunista. Mas a sua real personalidade, apesar do cuidado que teve em esconde-la, projectou-se várias vezes em posições e actos públicos que deixaram a descoberto, sem lugar para dúvidas, a sua verdadeira personalidade. No capítulo que reservo à análise do seu percurso político procurarei reflectir sobre o significado de algumas posições que assumiu para consolidar a sua liderança..»
Durante anos segui, à distância, o seu extraordinário percurso. No Tarrafal, pouco mais de um ano depois de ter ali chegado, pudera acompanhar, em parte, pelos relatos do Gilberto de Oliveira e do Domingos dos Santos, recentemente regressados da União Soviética, a sua prodigiosa ascensão no âmbito da Internacional Comunista. O Florindo de Oliveira (“Spartaco”) tinha seguido para a URSS na companhia do Bento no fim de Julho de 1935. O Domingos dos Santos (“Calabrês”) e o Cunhal partiram pouco depois, em Agosto do mesmo ano. O “Spartaco” e o “Calabrês” foram detidos pouco depois do seu regresso da União Soviética e expedidos, sem mais delongas, para Cabo Verde.
Foi justamente o “Spartaco” que me transmitiu, quando chegou ao Tarrafal, a reacção de Cunhal quando, pela primeira vez, no verão de 1935, foi apresentado ao Pavel em Moscovo[1]. A sua extensa obra literária, que ia desde a ficção à crítica de arte – especialmente em matéria de pintura mural, de que o México se tornara num paradigma, de que foi considerado o crítico mais reputado – ficou bem patente nos reflexos que teve na cultura daquele país. O Estado mexicano, país da sua forçada adopção, dedicou-lhe uma homenagem nacional como reconhecimento do precioso contributo que deu à cultura daquele país.
Pavel tinha um enorme respeito pela cultura e pelo perfil do então secretário-geral do PCP, Bento Gonçalves, enquanto indiscutível representante da classe operária. E, também, de dirigente máximo dos comunistas portugueses. Consolidei a mesma opinião ao longo do estreito convívio que mantive com ele durante muitos anos.
Em 1938 tivemos conhecimento, no Tarrafal, da nova detenção do Pavel. O impacto desse acontecimento entre os prisioneiros comunistas foi enorme.
A continuação da guerra civil de Espanha tornara importante o papel de Portugal enquanto retaguarda, não só do fascismo espanhol, mas também do fascismo europeu, liderado pela Alemanha nazi. Para a União Soviética era extremamente importante a derrota do nazi-fascismo em Espanha ou, no mínimo, atrasar a sua vitória se esta se tornasse inevitável. Precisava de tempo para reforçar a sua economia e o seu exército. Era dali que provinha, para a URSS, o maior perigo.
A acção do Pavel no nosso país assumiu para a Internacional Comunista, naquela fase, uma relevância muito superior àquela que ele então desenvolvia na URSS.
Foi por isso compelido a deixar ali a mulher – a soviética com quem casara e de quem tivera um filho – e a regressar a Portugal para assumir aqui a direcção do PCP.
A prisão, no final de 1935, dos três membros do seu secretariado nacional – e, nomeadamente do seu secretário-geral, acabado de regressara da URSS – decapitara, num momento crucial, a direcção do Partido
O Pavel voltou a Portugal em 1937. É preso cerca de um ano depois. Embora a doença estivesse controlada, o facto é que continuava tuberculoso.
A polícia conhecia o historial da sua doença. A maior parte do tempo em que esteve preso quando, pela primeira vez, caiu nas malhas da polícia, passou-o, inicialmente, na enfermaria da prisão do Limoeiro. Por isso, no decurso da organização do processo, não foi agredido.
O Pavel assumiu as suas responsabilidades de dirigente comunista. Depois de encerrado o processo, foi enviado para a enfermaria do Aljube. Encontrou ali um ex-jovem comunista, o Augusto, que ele identificou como um antigo membro da Juventude Comunista, no período de1932/33, ou seja, durante a fase em que o Pavel exerceu o cargo de secretário-geral daquela organização.
O Augusto explicou-lhe que decidira concorrer àquele lugar com a intenção de, oportunamente, prestar um grande serviço ao Partido.
O Pavel, de início, desconfiou dos reais objectivos do Augusto. Submeteu-o, segundo me disse, a várias provas. Mas acabou por se convencer de que as suas intenções eram genuínas. Pô-lo em contacto com a direcção do PCP. E elaboraram, em conjunto, o plano de fuga.
A evasão, com o apoio logístico e operacional do Partido, foi bem sucedida. O Augusto, na companhia de outro prisioneiro, fugiu com o Pavel. Este prometera levá-los para União Soviética. Estava convencido de que, no seguimento da sua fuga, passaria ali algum tempo para se ressarcir do abalo que acabara de sofrer. Tinha lá a família. Era um quadro altamente prestigiado do movimento comunista internacional. A presunção de que aceitariam o seu regresso à Rússia, no caso da fuga ser bem sucedida, tinha todo o cabimento.
Não sei se a versão que o Augusto lhe apresentou correspondia ou não à verdade, ou seja, se ele procurara chegar àquele lugar com a deliberada intenção de, no momento oportuno, ajudar algum membro importante da direcção do Partido a evadir-se. Não procurei saber o que o Pavel pensava sobre este aspecto da sua extraordinária odisseia. Penso, aliás, que nem ele próprio estaria em condições de garantir que o Augusto fizera aquele complexo percurso unicamente inspirado pelas suas persistentes convicções ideológicas. Tudo o que se pode garantir é que o Augusto agiu, naquele caso concreto, como se a sua versão fosse verdadeira, ou seja, com inegável boa fé.
É provável que a história que contou não correspondesse à verdade. O ajudante de enfermeiro terá concorrido àquele lugar, não por se ter convertido em fascista, mas porque não arranjara outro emprego. É óbvio que, ao dar esse passo, revelara uma certa fraqueza de carácter. Mas não é difícil admitir que, apesar disso, tenha conservado as convicções ideológicas do tempo em que fora jovem comunista. O Pavel terá sido para ele, a certa altura da sua vida, o que foi como para muitos outros jovens. Ele representava, no nosso imaginário, o perfil do revolucionário exemplar, tanto pelo seu saber, como pela sua fascinante personalidade. Não admira que o Augusto tenha conservado, desde o seu tempo de jovem comunista, a admiração que sentia por ele.
O Pavel não me relatou os pormenores da organização da fuga imaginada, no essencial, pelo Augusto. Contou-me apenas os tópicos mais gerais. De qualquer modo, só o ligou ao Partido, com vista ao indispensável apoio logístico, depois de o submeter a várias provas destinadas a testar a seriedade das suas intenções. O Augusto saiu-se bem de todas. Adquiriu a certeza de que ele tinha um genuíno desejo de o ajudar a evadir-se. Contar-me-ia que depois da evasão ficaram ligados por laços de amizade de tal modo fortes que, quando se instalaram no México, partilharam diariamente o pequeno-almoço, até à morte do Augusto, ocorrida muitos anos depois! O Pavel tinha a profunda convicção de que o Augusto o salvara de uma morte quase certa.
Efectivamente, se não tivesse fugido, a polícia tê-lo-ia remetido, pouco depois, sem a menor dúvida, para o Tarrafal.
A fuga, permito-me insistir, foi preparada em estreita colaboração com a direcção do PCP. O médico Ludgero Pinto Bastos, que na altura pertencia ao secretariado nacional do PCP, desempenhou nela um importante papel. Tratou-o, nomeadamente, das feridas causadas nas mãos pela fricção na corda utilizada para chegar à rua.
[1] Penso que o juízo negativo que Cunhal manifestou nessa altura sobre Bento Gonçalves, quando comparado com o Pavel, reflecte o impacto que exerceu sobre ele, um brilhante intelectual, a personalidade de um ex-operário que se transformara, graças ao seu esforço e à sua excepcional inteligência, também ele num intelectual cujo nível seria eventualmente superior ao de Álvaro Cunhal. No juízo de valor que Cunhal fez de Bento Gonçalves não entraram as reais qualidades que o distinguiam como genuíno dirigente operário. Também este aspecto ajuda a compreender a personalidade de Cunhal enquanto dirigente comunista. Nomeadamente o sentido da hierarquia intelectual, e de menosprezo pelos operários, que está implícito nesta sua apreciação. E isto apesar de ter pretendido, na última fase da sua vida, ficar para a História como “um filho adoptivo da classe operária”... Cunhal teve uma permanente preocupação de cuidar da sua imagem como dirigente operário e como líder comunista. Mas a sua real personalidade, apesar do cuidado que teve em esconde-la, projectou-se várias vezes em posições e actos públicos que deixaram a descoberto, sem lugar para dúvidas, a sua verdadeira personalidade. No capítulo que reservo à análise do seu percurso político procurarei reflectir sobre o significado de algumas posições que assumiu para consolidar a sua liderança..»