quarta-feira, novembro 15, 2006

A minha demissão do PS

O Partido Socialista está mais «unido» do que nunca, depois do XV Congresso.
Não há qualquer risco na difusão da carta de demissão que escrevi em 4 de Maio e que me parece cada vez mais actual.
O país atola-se na corrupção e toda a gente parece indiferente, apesar de os jornais disso nos trazerem notícias todos os dias...

Exmº Senhor
Dr. António de Almeida Santos
Distinto Presidente do Partido Socialista
Sede Nacional - Largo do Rato
Lisboa



Lisboa, 4 de Maio de 2005


Meu Estimado Amigo:

Escrevo-lhe na minha qualidade de militante do Partido Socialista (nº 4.310) para lhe anunciar a minha demissão e lhe pedir que adopte as providências adequadas ao seu registo.
Tomei esta decisão de forma muito ponderada, assumindo-a como um acto de cidadania, que nada tem de inamistoso para com o Partido ou os camaradas com quem convivi nos últimos 31 anos.
Tenho 54 anos, já me divorciei duas vezes e esta terceira vai fazer-me melhor ao ego do que as outras. Tal como tenho uma relação civilizada (e agradável) com as minhas ex-mulheres, também depois deste divórcio, espero ter uma boa relação com o PS, de quem me descaso.
Julgo importante dar-lhe conta dos aspectos mais importantes da minha reflexão, porque me parece que ela pode aproveitar ao próprio partido, de onde saio voluntariamente mas a quem desejo os maiores sucessos.
Sou militante no PS desde 1 de Abril de 1975 e cheguei à conclusão de que não devo manter esta relação, porque se esgotou – sobretudo no plano dos sonhos que comandam a vida - quase tudo o que justificou o seu estabelecimento.
Eu era, na altura, um jovem jornalista. Tinha acabado de vir de Paris, onde frequentei o primeiro curso aberto pelo Centre de Formation des Journalistes a jornalistas portugueses. Trabalhava no “Jornal de Notícias” e fazia, como sempre fiz, um grande esforço por produzir informação rigorosa.
Nunca aceitei a lógica da informação isenta, porque... não há informação isenta, apesar de se ter consagrado na actual lei de imprensa, da lavra do PS, esse enorme disparate. Sempre entendi que o pluralismo se encontrava, no plano da informação, no cumprimento da obrigação de rigor que vincula todos os jornalistas, sem prejuízo das suas diversas tendências, que marcam a realidade com cores plurais, por via da valoração dos elementos da noticias, que é naturalmente variável.
Por isso mesmo, não só não me suscitou nenhum problema de consciência a inscrição no Partido Socialista, como, pelo contrário, sempre a assumi de forma frontal, defendendo a absoluta compatibilidade entre o exercício do jornalismo e a filiação num partido político.
Nos tempos quentes de 1975, estive na primeira linha do combate pela liberdade de imprensa e multipliquei o meu tempo, trabalhando de manhã em “A Luta” e à tarde no “Jornal de Notícias”, sem que alguma vez a condição de membro do PS tenha prejudicado o cumprimento dos meus deveres como jornalista ou coarctado, de qualquer modo, a minha liberdade.
Mal sabia eu que a minha carreira jornalística haveria de terminar antes do tempo por causa dessa inscrição.
Foi em Fevereiro de 1982, quando da famosa “greve dos pregos”.
Eu tinha aceite o cargo de director-adjunto do diário “Portugal Hoje” e assumira a responsabilidade de proceder a uma reestruturação do periódico, que o viabilizasse e o afirmasse no mercado.
Lembro-me, como hoje, de uma conversa que tive com Mário Soares, antes de ter aceite o cargo. O que é que o meu amigo quer? Quer continuar a andar de táxi ou aceita começar a circular de autocarro? O jornal era quase um panfleto, com sete ou oito fotografias do Mário em cada edição e um culto de personalidade levado ao nível do Kim Il Sung. Aliás, Mário Soares apontou logo esse defeito e eu aproveitei para lhe dizer: assim o jornal não tem nenhuma credibilidade; o Sr. só pode aparecer quando fôr, efectivamente, notícia.
O Mário aceitou o desafio de começar a andar de autocarro, ou seja de ser notícia apenas quando fosse notícia, passando o jornal a relatar, com objectividade mas sem isenção – ou seja assumindo a sua tendência – a realidade do País.
Tínhamos uma excelente equipa de jornalistas de que relevo os nomes de Carlos Andrade, Celestino Amaral, Paula Garcês, Sérgio Soares, Mário Lindolfo, Alexandre Pais, Vítor Bandarra, José Rui Cunha entre outros.
Presto a Mário Soares a homenagem devida a quem nunca ingeriu na política editorial nem influenciou os conteúdos informativos.
No dia da “greve geral” faltou quase toda a redacção. Fizemos o jornal com meia dúzia de jornalistas, entre os quais um único fotógrafo, o Manuel Falcão, que me trouxe fotografias fabulosas da repressão policial no Rossio, que havia assumido aspectos grotescos.
Nesse dia, havia uma homenagem a Manuel Tito de Morais, um respeitável dirigente socialista, na Embaixada de Itália, onde lhe seria entregue uma condecoração dada por Sandro Pertini.
Como havia um único fotógrafo, eu tinha que optar entre mandá-lo para as manifestações do Rossio, em que se previa borrasca, ou para a cerimónia protocolar. Optei, naturalmente, pela primeira, mandando fazer um texto sobre a cerimónia, ilustrado por uma fotografia de arquivo.
À hora do fecho, apareceu-me na redacção o administrador João Tito de Morais a gritar que o jornal não sairia sem a fotografia do pai, pelo que mandaria parar as máquinas se eu ousasse avançar a impressão do periódico.
Era uma prepotência ao quadrado, porque João Tito Morais era, para além de administrador do “Portugal Hoje”, também administrador da tipografia que o imprimia (a CEIG, que ele ajudou a arruinar com os calotes ferrados pelos jornais de extrema direita que ali se davam á estampa).
Porque havia que apanhar os comboios e era importante que o jornal saísse com as notícias da violência policial, chamei a polícia e acusei-o de violar – aliás em flagrante delito – um direito essencial da liberdade de imprensa, o direito de imprimir.
Quando a polícia veio, ele deixou de gritar. E a máquina arrancou, imprimindo-se o jornal a tempo.
Foi um escândalo a que não dei causa. Ao outro dia João Tito de Morais saiu da administração do “Portugal Hoje” mas haveria de manter-se na administração da tipografia que o PS construiu com as ajudas dos partidos irmãos. O argumento para que assim acontecesse foi o de que ele precisava de um emprego.
O Edmundo Pedro, uma das pessoas mais generosas que conheci no PS, e o João Gomes pediram-me para ficar. Mas, porque era impossível continuar a fazer um jornal em litígio com a tipografia, saí. E fui para o desemprego...
Tive, na altura vários convites para diversos jornais, até em condições mais interessantes, do ponto de vista económico, do que as que tinha no “Portugal Hoje”. Entendi não os aceitar, porque os interpretei, naquela conjuntura, como presentes envenenados, que haveriam de pôr em causa a solidariedade que eu devia ao PS.
Acabei aí, precocemente, a minha carreira de jornalista.
Tinha um filho de cinco anos e a mulher grávida e fiquei numa situação extremamente difícil, sem que alguém se preocupasse com isso. Por acaso tinha numa gaveta um diploma da licenciatura em direito e até já tinha concluído o estágio da advocacia com o nosso camarada José Maria Roque Lino.
Morreu um jornalista mas nasceu, de um momento para o outro, um advogado, que dizem que não é mau. Não escondo as saudades que tenho dos jornais nem a mágoa que me vem daquele triste desfecho. Mas se hoje estivesse na mesma situação faria rigorosamente o mesmo, porque sou e hei-de continuar a ser um homem de lealdades.
Ao longo destas últimas três décadas mantive a minha fidelidade ao PS e ao seu ideário, participando sempre que me é possível nas suas iniciativas, convivendo com camaradas, discutindo ideias e procurando dar o meu apport nas áreas em que me reconhecem melhor aptidão.
Abstive-me durante todo este tempo de fazer criticas públicas a situações que julguei criticáveis, substituindo-as pelo desabafo com companheiros com quem privo, num circuito fechado dificilmente tolerável nalguns momentos.
Nunca me candidatei a cargos partidários porque tenho modo de vida e nunca tive o tempo suficiente para os poder desempenhar dignamente, sem prejuízo da minha vida profissional. Mas nunca recusei as missões que – mediata ou imediatamente – me confiaram, procurando desempenhá-las com respeito pelos nossos princípios e pelo nosso ideário. Saliento, a propósito, a da participação na Alta Autoridade para a Comunicação Social, de onde me demiti apenas no momento em que a Assembleia da República perverteu o sentido desse órgão constitucional e o transformou numa polícia da comunicação, com poderes para acoimar, em desfavor da função cívica que deveria exercer pela mensagem. Saíram logo depois de mim o camarada António Reis e a escritora Lídia Jorge.
Ajudei o Joaquim Raposo na conquista da Câmara da Amadora e fui membro da Assembleia Municipal por uma legislatura. Envolvi-me com Mário Soares na última campanha eleitoral, participando activamente na organização das acções que se fizeram na media do Brasil.
Ao longo dos últimos anos tenho emprestado o meu apoio aos camaradas das comunidades portuguesas no estrangeiro, ajudando-os sobretudo no esclarecimento de questões jurídicas relacionadas com o seu trabalho político.
Assisti, neste último plano, a coisas tão grotescas e tão chocantes que só por si justificariam que já tivesse saltado do barco há muito tempo. É matéria que é do conhecimento dos responsáveis do Partido e, por isso, não vale a pena que me alargue mais.
Guardo os apontamento mais burlescos para um livrinho que um dia hei-de publicar. Mas não posso, apesar disso, deixar de referir a escandalosa liquidação do próprio Presidente da Federação da Suiça do Partido Socialista, que defendo num processo política, jurídica e moralmente ignóbil por cujas consequências o Partido é o principal responsável.
Manuel de Melo foi aposentado compulsivamente em razão das suas opiniões políticas, é membro da Comissão Nacional do Partido e o partido que o liquidou não repara sequer nas suas faltas ás reuniões.
Por ser militante do Partido, guardei sobre a matéria o mais prudente silêncio, quando num outro quadro, o normal seria que viesse para os jornais denunciar o que é um infame escândalo.
Abstive-me como cidadão de uma participação cívica mais activa, fora do quadro do Partido, porque entendo que a qualidade de militante de um partido político implica um compromisso de auto-contenção.
Ao longo destes anos escrevi umas duas dúzias de artigos em jornais, apenas em situações que, do meu ponto de vista, ultrapassavam todos os limites da razoabilidade ou da decência.
Penso há muito – e continuo a pensar - que os partidos políticos são essenciais ao bom funcionamento do regime democrático. Mas penso também que, em abono do princípio contido no artº 51º,5 da Constituição, os partidos políticos devem reger-se pelos princípios da transparência, da organização e da gestão democráticas e da participação de todos os seus membros.
E é aqui que começa a minha crise de consciência por relação ao Partido Socialista.
É inerente à própria essência da formação da vontade popular e da organização do poder político, a que concorrem os partidos, a obrigação de comedimento dos seus membros em termos de intervenção pública. No fim de contas, o que a lógica partidária importa de mais essencial é o desafio à síntese, que se traduz naquilo a que habitualmente chamamos correntes de opinião. Não é possível definir, de forma coerente, uma corrente de opinião – ou de pensamento – se as opiniões que as influenciam, que dela são pressuposto e que lhe dão alma, se perderem de forma isolada no vácuo em que se volatilizam as opiniões individuais.
A História tem desta realidade dois exemplos de protótipos: o do junta a tua à nossa voz que consiste, essencialmente, na existência de uma elite pensante e de uma multidão que lhe amplia os slogans e o do cada homem uma voz, cumprindo ao partido a síntese da pluralidade.
O PS nasceu, como partido democrático, adoptando o segundo modelo, sendo de sua lavra, tanto quanto me lembro, a norma do referido artº 51º,5, nascida apenas na revisão constitucional de 1997.
É essa lógica de transparência e de participação de todos os membros na vida partidária que justifica a capitis diminutio que a condição de militante de um partido implica. A fidelidade partidária é a contrapartida natural do direito de participação democrática na formação da opinião do próprio partido como corrente política.
Esta capitis diminutio só se justifica se os partidos tiverem vida efectiva e se neles for possível a intervenção cívica. Se eu tenho a possibilidade de debater ideias dentro do partido, de contribuir para a formação das suas políticas não faz sentido que eu intervenha, de forma isolada, na opinião pública. Mas se eu não tenho nenhuma possibilidade de aceder a tal debate, então não faz nenhum sentido essa fidelidade, sem nenhuma contrapartida.
Mais do que não fazer sentido, tal fidelidade redunda, neste último quadro, numa inaceitável forma de opressão da liberdade de expressão do pensamento.
A coisa é ainda mais grave quando, havendo uma declaração de princípios que se assume como uma espécie de constituição partidária, somos confrontados na prática com a ofensa grosseira dessa base constitucional e a perversão de todos os seus princípios.
É essa, meu estimado António de Almeida Santos, a razão originária da minha demissão.
Eu não estou disposto a manter uma fidelidade partidária, implicando toda essa contenção que assumo como dever cívico, quando não há debate político no PS. Não estando disposto a violar esse dever – porque o entendo essencial – só me resta a atitude libertadora da demissão.
Perguntar-me-à porque tomo uma decisão destas quase vinte e sete anos depois da minha inscrição. E eu respondo...
É que a situação do Partido Socialista se degradou, a meu ver, a um ponto insustentável e não há nenhuma esperança de que algo venha a mudar a breve prazo.
O PS transformou-se num deserto de ideias com um ninho de gatos de várias qualidades que só sobrevive se mantiver esse deserto. Tudo o que seja pensamento pró-activo, tudo o que seja crítica, no bom sentido democrático, incomoda e é gerador de desconfianças.
O PS transformou-se num partido de homens sem história e sem referências democráticas, porque só assim, pelo branqueamento da história política dos que a têm, conseguem afirmar-se os que a não têm ou que a têm no pior sentido.
Os nossos grandes vultos – e você é um deles – estão condenados ao caixote do lixo da História, perante o crescendo do arrivismo que marcou a vida do PS nos últimos anos.
Desapareceu a paixão pela Política e chamam de loucos os que continuam a guiar-se por princípios, em contraponto com o salve-se quem puder que passou a estar na ordem do dia. Há fortunas colossais acumuladas de forma estranha, como se alguns titulares de cargos públicos – com relevo para os autarcas - tivessem o condão de comprar todas as semanas cautelas premiadas. E a culpa continua a morrer solteira, nada se investigando, apesar das denúncias públicas dos jornais.
Quando falo disto, dizem-me que não são só os nossos. Dizem-me mais: que se houvesse justiça estavam presos metade dos nossos mas estariam presos dois terços dos outros. E eu respondo que os nossos (que passam a ser só vossos) é que me importam, que deveriam ser imunes a qualquer suspeita.
O Partido definhou e deixou de ser um ponto de reflexão para ser uma central de gestão de interesses particulares, que usa os militantes como tropa de choque.
Claro que todos os militantes têm o direito de pretender inserir-se em postos chave da referida central, usando para isso os mecanismos democráticos. Toda a gente tem o direito de se candidatar e de se fazer eleger. Mas esta descaracterização retirou a muitos qualquer interesse de participar nesse jogo.
Eu sou um deles e tenho deixado arrastar a minha situação no Partido, com uma velada esperança de que as coisas pudessem mudar e sempre com o estafado argumento de que «é cá dentro que se luta».
Como deixei de acreditar nisso, vou-me embora.
Dizia Deng Xiao Ping que os que ocupam as retretes sem conseguirem obrar devem dar lugar a outros. Sigo o conselho do velho comunista e retiro-me, não porque tenha prisão de ventre, mas porque não estou disposto a a participar neste jogo de sanita. É preciso que haja alguém neste Pais que não queira fazer merda.
Acredito que não tomo esta atitude em abono de um qualquer moralismo. Tenho muitos amigos que são corruptos e não deixo de ser amigo deles por causa disso. Chamo-lhes «ladrões», cara a cara, como chamo «putas» às putas com quem tenho confiança.
Mas não faço negócios nem com uns nem com outros, o que os leva a dizerem, em uníssono, que tenho mau feito, ao que respondo, jocosamente que (eles e elas), em contrapartida, não têm vergonha.
Felizmente, a Democracia permite-nos estas coisas, este falar à vontade e também esta completa falta de pudor, redundante de uma Justiça que faliu e em quem já ninguém tem esperança.
Ainda bem para muitos amigos nossos, mesmo que não concordemos com eles.
Porém, a sociabilidade que nos permite estas ousadias é bem diferente da pertença a um club. Uma coisa é ir ver as putas e outra ser sócio do prostíbulo e poder ter a fama de viver à custa dos seus rendimentos.
A metáfora talvez não seja a melhor, mas pode crer que ela faz sentido.
Há cerca de um mês, no meio de uma conversa em que se discutia a falta de clareza na contratação de advogados por entidades públicas, disse-me um camarada esta coisa tão singular quanto ofensiva: «Temos indicações para não contratar advogados ligados ao PS, para que a comunicação social não diga que estamos a favorecer gente do Partido…».
Eu tinha-me limitado a criticar a falta de transparência e o objectivo favorecimento de algumas sociedades e de alguns advogados que constituem um autêntico oligopólio na prestação de serviços jurídicos ao Estado e a entidades públicas. Nada pedi e esse imbecil, que por acaso é meu amigo, suportado por todo o peso do Estado e do Partido ofendeu-me na minha condição de Homem, por ser filiado no PS.
Eu julgava que não nos contratavam por recusarmos práticas que não aceitamos, nomeadamente aquela clássica de emitir a factura pelo valor do serviço e dos impostos que cubram uma avultada comissão. A última proposta que nos fizeram envolvia uma factura de 1 milhão de euros. Pagávamos os impostos, devolvíamos a maior parte do dinheiro e ainda ficávamos com 100.000 euros… Um bom negócio que nós não fizemos mas alguém fez…
É uma operação «clássica» mas nós não aceitamos essas práticas e com isso temos alimentado uma imagem que gera desconfiança perante alguns operadores e, nos tempos que vão correndo, perante alguns camaradas com funções relevantes no plano decisório.
Compreendemos essa reacção e respeitamos o sigilo de quem nos consultou e a quem, obviamente, não interessamos como advogados.
O que eu não consigo compreender e não posso aceitar é a camuflagem desta realidade chocante – e dessa outra do descarado envolvimento de políticos de primeira linha na assistência profissional a negócios privados do Estado - com o argumento acima expendido, colocando sob suspeita toda a gente séria que é do PS pelo facto de o ser.
Há uma perversidade em tudo isto que absolutamente chocante.
Hoje, toda a gente bem informada sabe que há uma teia de interesses que passa pela medula do partido e que vive do aproveitamento do partido para o tráfico de influências.
É escandalosa a conflitualidade de interesses que convive em muitos dos camaradas, alguns dos mais notáveis e parece que ninguém se preocupa com o que, cada vez mais medrosamente, vai aparecendo na comunicação social.
São conhecidas as fortunas sem justificação de muitos daqueles que integram o clube dos meus amigos a quem chamo, carinhosamente, de «ladrões». E ninguém repara nisto…
Mas repara-se no facto de alguém ser do PS para, em defesa da falta de transparência que alimenta os mesmos lobbies, lhes negar o direito à livre concorrência, para, alegadamente, proteger o Partido.
Ainda num dia destes me dizia um amigo comum que eu sou um «inadaptado» e eu acho que ele tem razão.
O drama está em que eu não quero adaptar-me, preferindo adoptar nesta matéria uma postura conservadora.
Recordo, a propósito, a minha última conversa com Álvaro Cunhal - a quem ataquei vigorosamente nos anos 70 e 80, mas por quem tenho um enorme respeito. Visitei-o na fase final da sua vida, recordamos as guerras do Prec, as entrevistas que lhe fiz e falamos dos ex-comunistas. Ele usou precisamente essa expressão – inadaptados – para lhes chamar renegados e potencialmente corruptos.
Radical, preso como bronze à rocha da sua moral, o velho líder talvez cometesse algum exagero, mas não deixaria de ter a sua razão. Ele conhecia melhor do que ninguém a perversão dos aparelhos, que temos, com outras cores, na sua melhor dimensão.
Tenho amigos, reconhecem-me algum prestígio e algumas qualidades e tive oportunidade de aproveitar os meus relacionamentos para me inserir em grupos que beneficiam de privilégios em Portugal.
Optei por não seguir esse caminho e por dar o meu contributo pessoal para que Portugal saia da vergonhosa posição que ocupa como o Pais com o mais elevado índice de corrupção da Europa, segundo o Relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Humano.
Entendi que o lugar privilegiado para estar com uma tal postura era o PS. Vi-me agora forçado a concluir que não é… e que é o próprio Partido quem, como posturas como as descritas, lança a suspeita sobre os que, de uma forma honesta, ocupam as suas fileiras.
É uma desilusão tamanha.
Por isso me vou embora, assobiando e de cara alegre, porque tristezas não pagam dívidas.
Espero que não haja retaliações. Agora, que já não sou do PS, não há razões para não respeitar as regras da livre concorrência…
Creia na minha maior estima por si, a quem desejo que, com a sabedoria que lhe é peculiar, faça o possível pela defesa do decoro, tão importante nestes tempos em que o PS é governo e tem um bom governo, que o partido acabará por liquidar se não mudar de atitude.
Por mim limitar-me-ei a entregar cópia desta carta a uma meia dúzia de amigos a quem devo consideração e a guardá-la para publicação futura, num livro de reflexões que vou fabricando dia a dia.
Peço-lhe que dê conhecimento dela ao Secretário-Geral e ao Joaquim Raposo, que é meu amigo pessoal e lidera a Federação a que pertenço.
Os meus melhores cumprimentos


Miguel Reis