quarta-feira, novembro 08, 2006

EDMUNDO PEDRO - MEMÓRIAS

«Homem de grandes paixões, ao abraçar o ideário comunista meu pai converteu-se num militante extremamente activo. Entregou-se à actividade partidária com a profunda determinação que punha em todos os actos da sua vida.
Viveu por dentro a primeira grande crise daquele partido - crise que coincidiu, não por acaso, com outras semelhantes ocorridas, por essa altura, em quase todos os partidos comunistas. Eram, a maior parte das vezes, conflitos de interesses pessoais, normalmente em torno do problema da liderança política e do poder.
Esses conflitos eclodiam periodicamente. Reflectiam o ambiente de generalizada suspeição que reinava na URSS . Esse ambiente estendeu-se a todos os partidos que faziam parte do movimento comunista internacional. Reflectiam o temperamento autoritário e cruel do todo-poderoso Estaline.
Por essa altura, ele iniciara as “purgas” que conduziriam ao assassinato da maioria dos principais dirigentes do PCUS que tinham levado a cabo a Revolução de Outubro. Mandava prender e fuzilar todos os que considerava suspeitos de porem em causa as suas opiniões e o seu poder absoluto.
As "purgas" periódicas, inspiradas na prática estalinista, tornaram-se uma constante no seio dos partidos da III.ª Internacional, sobre a qual Estaline exercia um controlo absoluto. A “caça às bruxas”, seguindo o exemplo de Moscovo, propagava-se a partir daquele centro, em ondas concêntricas, até aos confins do planeta. Nenhum partido da IC escapava a essa lógica. O IV.º Congresso do PCE conduziu à expulsão do "grupelho provocador” constituído por Trilla, Bullegos e Adam e à eleição do novo secretário-geral, José Diaz.
O meu pai e a minha mãe (que também se filiou no PCE logo que chegou a Sevilha) participaram activamente nesse conclave. Até o meu irmão João, com apenas onze anos, esteve presente naquela reunião magna em nome dos "pioneiros portugueses" que, obviamente, não existiam! O que não o impediu de usar da palavra para saudar, em nome dessa imaginária "organização", o Congresso do PCE. Minha mãe, então com 28 anos, também usou da palavra nesse congresso em nome da organização comunista das mulheres portuguesas – organização que, tal como a dos "pioneiros", só existia na imaginação dos dirigentes comunistas...
Não recebera, como parece evidente, qualquer mandato para intervir em nome das mulheres portuguesas. Não creio que existisse naquele tempo uma estrutura comunista que as agrupasse. Só muito mais tarde o PCP viria a criar essas organizações. Contudo, na óptica dos dirigentes comunistas presentes no Congresso, o que tinha importância era, aparentemente, a representação simbólica – aspecto a que o movimento comunista sempre ligou uma extrema importância.
A URSS tornara-se o modelo universal do movimento comunista. Por isso a prática do Partido Bolchevique – por definição o Partido Guia e, portanto, o inspirador de todos os outros – era copiada, em todos os aspectos, pelos restantes partidos da Internacional Comunista. O enquadramento dos vários grupos sociais – crianças, jovens, intelectuais, operários, camponeses, ex-combatentes, mulheres, deficientes, os reformados, etc., etc. – de modo a integrá-los na dinâmica do movimento comunista, constituiu, desde cedo, uma prática imperativa seguida por todos os partidos comunistas.
E foi assim que minha mãe e meu irmão se viram transformados, nesse congresso, em representantes de imaginárias organizações... Tudo isso viria a contribuir para se tornaram, eles também, activos elementos do movimento comunista – situação que lhes viria a acarretar, cada um à sua maneira, trágicas consequências pessoais.
[1]
Como era esperar, visto que os partidos comunistas mantinham entre si uma estreita colaboração – e os poucos que subsistem continuam a mantê-la, a despeito da sua crescente rarefacção e decomposição – os meus pais acabariam por conhecer em Espanha alguns dirigentes do PCP. O mais provável (embora disso não esteja certo) é que esse contacto tenha sido estabelecido com o representante dos comunistas portugueses naquele congresso. O resultado desse contacto foi o convite da direcção do PCP, dirigido aos meus pais, para ingressarem nele e regressarem clandestinamente a Portugal para se dedicarem, a tempo inteiro, à actividade partidária. Assumiriam o estatuto de funcionários políticos.
Ambos aceitaram a proposta. No fim de 1931 (ou no início de 1932, não posso precisar exactamente) os meus pais entraram no nosso País clandestinamente para se entregarem, em exclusivo, à actividade revolucionária.
Sob a influência dos dirigentes comunistas com quem passara a contactar, minha mãe, que era dotada de um alto espírito de sacrifício e de justiça, ajudada pelos catecismos que lhe deram a ler, acabaria por se identificar totalmente com a ideologia marxista-leninista. Penso, no entanto, que embora essas leituras e contactos a tivessem influenciado, a sua principal motivação, ao aceitar a proposta do PCP, foi a circunstância de continuar apaixonada pelo marido. Estivera sempre disposta a acompanha-lo em todos os passos importantes da sua vida.
[1] Efectivamente, meu irmão faleceria cerca de três anos depois em consequência de uma agressão sofrida no rescaldo de uma manifestação estudantil - e minha mãe acabaria por ser detida, passados dois anos sobre estes acontecimentos, como quadro responsável do PCP.»