quarta-feira, novembro 08, 2006

EDMUNDO PEDRO - MEMÓRIAS

«Numa das suas visitas a Lisboa, depois do 25 de Abril, o “Pavel” contar-me-ia que os responsáveis do Comintern (Internacional Comunista) tinham dificuldade em de compreender como é que num pequeno país, periférico e atrasado, com uma incipiente classe operária, tinha surgido um núcleo dirigente composto exclusivamente por operários de um tal nível político e cultural.
Bento fora, até à sua primeira detenção, como referi atrás, presidente do Sindicato do Pessoal do Arsenal da Marinha. Foi nessa qualidade que em 1927, aos 25 anos, visitou pela primeira vez a URSS. Fê-lo a convite da Internacional Sindical Vermelha (ISV). Era nessa altura um sindicalista altamente prestigiado. Daí a iniciativa do convite. No regresso da União Soviética, impressionado com o que observara (ou julgara observar) aderiu ao projecto político do PCP. Dois anos depois, ascendeu ao cargo de secretário-geral.
Bento Gonçalves foi operário de corpo inteiro. E nunca quis ser outra coisa. Na bela contestação que dirigiu ao Tribunal que o julgou relatou a sua aprendizagem escolar, o seu reconhecido mérito profissional, e manifestou o desejo de que o Arsenal tenha beneficiado das suas capacidades de técnico excepcional. Bento tinha orgulho no seu trabalho. Nessa contestação exprimiu a sua estima pela empresa onde se especializara e que servira com a sua extraordinária mestria.
Bento Gonçalves morreu aos 40 anos. Ninguém pode, com legitimidade, especular sobre qual seria o seu percurso político se não tivesse terminado a sua vida, precocemente, no Tarrafal. Não pôde acompanhar de perto, nomeadamente, a degenerescência do modelo soviético de poder instalado na Rússia, depois da Revolução de Outubro. Essa progressiva alteração do projecto inicial teve por diversas vezes afloramentos sangrentos, antes do colapso final, em vários países que adoptaram o mesmo sistema. Não pôde acompanhar esses acontecimentos nem tirar deles as evidentes conclusões que implicavam.
Não teve a oportunidade de assistir, por exemplo, à resistência, sangrenta e desesperada, dos operários das grandes fábricas de Budapeste, contra o “ Governo Operário” de Rakosi, apoiado pelos exércitos soviéticos. E também não pôde acompanhar a luta dramática e heróica dos operários polacos – para citar só um dos casos mais paradigmáticos –, conduzida na clandestinidade e nas condições de uma feroz repressão, pela legalização do sindicato “Solidariedade” . Esta acabaria por se impor, contra a vontade dos comunistas, como a sua central sindical verdadeiramente representativa.
Ora, se nem eu, nem ninguém, pode garantir em que medida estes acontecimentos teriam influído no percurso político de Bento Gonçalves há em todo o caso uma convicção que me atrevo a exprimir sobre o que ele, de certeza, não faria se continuasse vivo. Não daria cobertura política não só à dissolução do “Solidariedade” – decretada pelo então secretário-geral do partido comunista polaco e comandante em chefe das forças armadas polacas, general Yaruzelsky – nem à terrível repressão que se abateu sobre os dirigentes operários a seguir a essa vergonhosa iniciativa. E não o faria pela simples razão de que essa atitude do chefe comunista polaco foi em tudo semelhante – mas infinitamente mais grave, em termos de repressão! – à decisão tomada por Salazar de dissolver o sindicalismo livre e impor, à força, o sindicalismo corporativo. Bento Gonçalves lembrar-se-ia de que fora um dos dirigentes da tentativa de greve geral de protesto levada a cabo pelas organizações operárias em 18 de Janeiro de 1934 contra aquela decisão. O fracassado desse protesto implicara numerosas prisões e incontáveis sacrifícios, entre os quais o do próprio autor desta reflexão. Fora responsável, de certo modo, pela morte do próprio Bento. »