O primeiro objectivo era o de contactar Fabiane, a namorada do cliente espanhol que me pediu assistência. Se outra utilidade não tivesse a deslocação, ela haveria de servir, pelo menos, como lenitivo para o acalmar. A jovem tinha-lhe telefonado a meio da tarde, desesperada por não ter roupa e angustiada por ter fome. O homem estava angustiado com o que poderia acontecer, tanto mais que na espera do aeroporto, onde passou o dia tentanto falar com alguém do SEF, lhe disseram que uma outra jovem detida abortara dentro do próprio centro de detenção, sem que lhe fossem prestados cuidados médicos.
Fabiane tinha sido sujeita recentemente a uma cirurgia e não estava na sua melhor forma, o que o preocupava.
Cheguei à primeira barreira e identifiquei-me como advogado. A agente privada da Securitas, que assumiu com toda a sua energia, o papel de falso agente da autoridade, com aquela pose que conhecemos a quem a usa, disse-me com antipatia: «Veja aí o numero e ligue...»
Uma tabuleta afixada na parede tinha uma série de números de telefone, entre os quais um do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Liguei e insisti durante meia hora, sem que alguém me atendesse.
Lembrei-me de ligar para a PSP e de pedir a ajuda desta polícia para me ligar ao SEF. Atenderam-me ao segundo toque e foram de uma grande simpatia.
«É o costume» - comentou o agente, que me deu dois outros números internos, através dos quais consegui falar com a inspectora de turno.
«Fui solicitado para dar apoio juridico a uma cidadã brasileira que está detida nos vossos serviços. Pretendo falar com ela...» - afirmei ao telefone.
«Deixo-o ver o processo mas não pode falar com ela» - respondeu a inspectora.
Insisti, afirmando que era direito daquela cidadã ser assistida por advogado. Trata-se de um direito fundamental de qualquer cidadão e constitui, a meu ver, ilícito criminal a oposição de um funcionário à prestação de apoio jurídico a quem dele careça.
Tive que dizer à inspectora que se não me deixasse falar com a Fabiane apresentaria imediatamente queixa contra ela na Polícia de Segurança Pública.
Aí mudou o tom do discurso...
«Vou mandar buscá-lo...» - disse antes de desligar.
Esperei, 10, 20, 30 minutos. Voltei a ligar protestando pelo abandono a que me votaram.
Passado um bocado lá chegou um agente do SEF que me conduziu ao Serviço.
«Aqui tem o processo...» - disse-me, entregando o dossier do inquérito.
Constava que Fabiane tinha afirmado conhecer mal o País, pelo que vinha a Portugal com a intenção de ficar aqui até Setembro para passar férias com o seu namorado, que identificou rigorosamente e de quem deu o respectivo número de telefone.
Ele já me havia dito que fora efectivamente contactado pelo SEF, a quem confirmara que assumia a estadia de Fabiane em Portugal. Aliás, a mala da namorada estava com ele, que viajara um dia antes, depois de uma estadia em Salvador.
Proposta a recusa de entrada no País porque a senhora não conhece Portugal nem sabe onde quer ir e porque não mostrou ter meios financeiros suficientes para se manter.
Comentei com o agente com quem falei que é natural que alguém pretenda visitar Portugal precisamente porque não conhece o País. E no que se refere aos meios de subsistência, se há quem a convidou, se alguém se responsabiliza pela estadia e pelo suporte da pessoa, onde está o problema?
Comentei que o namorado da Fabiane é director financeiro de uma grande companhia. Ripostaram-me que isso nenhuma importância tem. Até podia ser um vira latas...
Estamos no campo dos paradoxos mais absolutos...
«Já viu a quantidade de brasileiros ilegais que há por ai?»
«Claro que há muitos ilegais... porque os não legalizam. E sabe quantos portugueses há ilegais no Brasil? Se num dia destes o Brasil resolver agir como vocês agem vêm os aviões cheios para trás... As pessoas vão ao Brasil porque não conhecem o Brasil...»
É evidente que no dia em que a Federal começar a perguntar aos portugueses o que é que conhecem e onde vão, ao pormenor com que vai o SEF, ficam metade dos visitantes na fronteira, porque, obviamente, eles vão para conhecer.
Visto o processo pedi de novo para visitar a Fabiane. Depois de alguma insistência comunicaram-me que a inspectora, a titulo excepcional, me autorizava a conversar com ela durante quinze minutos.
Lá me levaram para a prisão em que se encontrava, no edificio do aeroporto.
Chamam-lhe Centro de Detenção, mas na realidade é uma prisão, com todos os rituais de um sistema prisional, apenas com a diferença de que é gerida por uma empresa de segurança privada.
Antes de aceder a essas instalações e apesar de ser advogado e de ir acompanhado por um funcionário do SEF fizeram passar todos os meus objectos por um sistema de raios X. Até o cinto me obrigaram a tirar, o que nunca me aconteceu nas centenas de viagens de avião que fiz até hoje.
Curiosamente este dispositivo de segurança é agora assegurado por agentes privados da empresa Prossegur, que exercem funções normalmente cometidas às autoridades.
A prisão é, como já disse, gerida também por uma empresa privada.
A porta abre-se com aquele ruido tradicional das fechaduras das prisões e todo o aspecto é de uma prisão. As pessoas estão «guardadas», para além dessa porta, em compartimentos também fechados à chave.
Se isto não é uma prisão, então o que é uma prisão?
Na realidade, as pessoas têm a sua liberdade completamente limitada. Tendo embora o direito de circular na área internacional do aeroporto, não o podem fazer, estando impedidas de se deslocar a um café ou a uma loja e tendo a liberdade de comunicação absolutamente limitada. Ao que me disseram, se a pessoa tiver um computador, apesar de estar numa zona internacional com Wifi, não o pode usar, o que é absolutamente ilegal.
As pessoas são «guardadas» sem os seus haveres, com a roupa que têm no corpo e não lhes é dada a possibilidade de mudar de roupa.
Depois de alguma espera e do repetir de barulhos de fechaduras, lá chegou a Fabiane.
Estava deprimida, preocupada com as preocupações do namorado. Com dores, porque fez uma operação recentemente e não tinha sequer uma aspirina.
Falei com ela durante os tais quinze minutos e perguntei-lhe por que razão não quis assinar o auto de declarações.
«Não está lá o que eu disse. O que escreveram não corresponde ao essencial do que afirmei. Eu disse que o M... é director financeiro de uma companhia que é concessionária de auto-estradas. Eles escreveram que trabalha na auto-estrada, como quem que dar a ideia de que trabalha nas obras. Expliquei que é o meu namorado há mais de quatro anos, que esteve comigo no Brasil até ontem, que até trouxe a minha mala porque não posso fazer esforços. Ele vive em Lisboa e eu vim passar três meses com ele. Como já estive em Espanha... A gente ainda está a namorar e passamos assim temporadas. Estamos a pensar casar mas não é para já... Isto tem alguma coisa de anormal?»
O passaporte prova, efectivamente, que Fabiane passou temporadas em Espanha, mas parece que a isso não foi atribuida nenhuma relevância.
Deixei Fabiane e voltei aos Serviços onde entreguei o requerimento que levava elaborado.
Juntei duas procurações, uma da Fabiane e outra do M....
Pedir o livro de reclamações e protestei pelas dificuldades que me levantaram ao exercício da minha profissão. Voltei a salientar que estava ali no aeroporto o namorado da Fabiane, disposto a assumir todas as responsabilidades.
Deixei atrás de mim pessoas com rostos marcados pela prepotência e pela irresponsabilidade, como se a autoridade lhes tivesse subido a todos à cabeça e os advogados fossem uma merda a que não têm que dar importância.
Lembro-me do tempo fascismo. E também do que ocorria no Leste antes da queda do muro de Berlim. Lembro-me do que ocorre hoje em todas as «democracias» musculadas ou corruptas.
Encontrei no hall do aeroporto um homem amargurado e perplexo.
«Como é possivel isto acontecer num país da União Europeia? Isto é terceiro mundo puro...»
Infelizmente é verdade.
Na Europa somos meros macacos de imitação dos países mais desenvolvidos. Mas imitamos mal, muito mal.
Há aspectos em que o nível de respeito pelos direitos humanos desceu a um patamar insustentável.