No dia 14 de Junho escrevi uma carta ao Prof. Feitas do Amaral, alertando-o para o que eu julgava ser um erro grosseiro em que poderia ter sido induzido.
Não acredito que, tendo recebido uma mensagem com este teor, o Ministro não tenha tido a preocupação de se informar do que se passou. O caso é grave nomeadamente porque na carta se denuncia a sonegação de uma peça processual da maior importância (a contestação que não foi junta aos autos) e porque o arguido não é uma pessoa qualquer.
Trata-se do actual presidente da Federação do Partido Socialista na Suiça, uma das mais prestigiadas personalidades das comunidades portuguesas da diáspora. Foi candidato a deputado nas últimas eleições legislativas e até teve uma intervenção cívica especial, no termo do processo eleitoral, ao denunciar perante o Tribunal Constitucional, a fraude verificada na contagem dos resultados eleitorais do Círculo da Europa.
Não era minha intenção divulgar esta carta, se ela tivesse tido resposta.
A falta de resposta a uma carta dirigida a um político não é nunca uma desconsideração por relação à pessoa que lhe escreveu. É sempre uma desconsideração das questões de fundo que na carta se suscitam.
Por isso mesmo entendo que a divulgação da missiva, para além de lícita, corresponde a um dever cívico.
Ficamos a saber que o Prof. Freitas do Amaral não é tão liberal como parece...
Este País está a ficar perigoso.
É lastimável que o PS aceite que o Ministro que foi buscar à direita lhe liquide um quadro ( o Presidente da Federação da Suiça) com fundamento em delitos de opinião política, para gáudio exclusivo de uma casta que não admite ser criticada.
Aqui fica a carta, sem mais comentários.
Exmº Sr.
Professor Diogo Freitas do Amaral
Distinto Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal
Pensei várias vezes antes de lhe endereçar esta mensagem. Só o faço porque mantenho a convicção que o Sr. Professor é um homem sério, que não «embarca» conscientemente em jogadas sujas, sobretudo se tais jogadas puserem em causa o futuro e a vida das pessoas.
Conhecemo-nos há mais de trinta anos, quando eu era jornalista e Vª Exª liderava o CDS.
Eu trabalhava no «Jornal de Notícias», onde escrevia diariamente uma coluna denominada «Momento Político». Já era militante do PS, mas sempre procurei manter uma postura rigorosa na elaboração da informação que produzia.
Acompanhei, por razões de ofício, o nascimento do seu partido e privei, na altura, com alguns dos seus principais dirigentes. Fiz amizades, no tempo em que isso era mal visto, com gente de um quadrante político oposto. Penso que, pela minha postura, granjeei o respeito da generalidade dos seus compagnons de route. E isso porque, na linha do que defendia Mário Soares, considerava (ao tempo minoritariamente) que era importante haver um partido do centro-direita em Portugal, sob pena de nunca conseguirmos chegar às liberdades que se fruíam em quase nos países europeus com democracias estabilizadas.
Sai dos jornais por volta de 1982, por entender que tinha acabado uma fase do processo político e que era preciso um novo modelo de jornalismo. Mas continuei envolvido na Comunicação Social, tendo sido escolhido para dois dos seus órgãos reguladores: o Conselho de Imprensa e a Alta Autoridade para a Comunicação Social.
Dediquei-me integralmente à advocacia e encontrei nesta nova profissão, com muita frequência, motivo de envolvimento em causas cívicas. Por isso não estou rico, mas continuo feliz.
Perdemo-nos de vista, mas tenho acompanhado com atenção a sua vida política. Respeito-o nesse plano e, na minha vida profissional, aprendi a admirá-lo como académico.
Congratulei-me quando, alguns dias antes da posse do Governo, num desses bas-fond de jornalistas que continuo a frequentar, soube que o Sr. Professor iria ser o novo Ministro dos Negócios Estrangeiros.
Estou em S. Paulo, onde vim para assistir à homenagem da comunidade portuguesa e da Casa de Portugal em S. Paulo a dois ilustres Mestres da Língua Portuguesa, no dia 10 de Junho, a Professora Clotilde Iemini Brasil e o Professor Pasquale Cipro Neto.
Estava para lhe escrever a propósito desse evento. Fiquei absolutamente chocado com a desvalorização que o seu Ministério faz destas coisas: toda a gente reparou, a começar pelos brasileiros, que não estava presente nenhum dos representantes do Estado Português nem do Instituto Camões, como aliás já se esperava. Manifestar-lhe-ia a minha indignação e aconselhá-lo-ia a tomar medidas que já tardam.
Eis senão quando me vejo obrigado a mudar de tema, para outro que é bem mais grave e que tem a ver também com o seu Ministério.
Caiu-me hoje no meu correio electrónico a cópia de um despacho aposto por Vª Exª no Processo nº P-218, da Inspecção Diplomática e Consular, em que é arguido o funcionário Manuel Guilherme Andrade Ferreira de Melo, do Consulado Geral de Portugal em Genebra, condenando-o na pena de aposentação compulsiva.
Sou seu advogado e, por isso mesmo, não lhe venho, obviamente pedir nada, tanto mais que, seja em acção para anulação do acto seja em acção de indemnização contra o Estado, são fartos os argumentos da sua literatura que me permitem atacar a decisão.
É pena que o Sr. Professor seja o Ministro e não o catedrático a quem haveríamos de pedir um parecer com que abrilhantaríamos o processo, pois que, estou certo que não há hoje entre os Mestres quem melhor pudesse ajudar-nos a combater a ignomínia que, pelo seu próprio punho, foi cometida.
Mas se não venho pedir nada nem lavrar qualquer protesto, que sentido faz escrever-lhe a falar sobre este assunto?
O Sr. Professor sabe melhor do que eu que o direito, começando por ser, na definição de Wienner, um controlo ético aplicado à linguagem, redunda, com frequência, no plano da aplicação, numa aniquilação que contraria a sua vocação reguladora para se afirmar como um mero mecanismo de exclusão.
Isso é especialmente grave quando estamos no domínio do político, como é o caso. Não me parece bem que, sendo Vª Exª o político respeitável que é, com o histórico que tem, possa ser aproveitado para, sem que fiquem sujas de sangue as mãos de alguém do PS.
Vamos, pois, falar apenas do político, deixando o demais para os órgãos próprios que são os tribunais.
O Sr. Professor foi usado, consciente ou inconscientemente, para decapitar um dos mais respeitados dirigentes do PS no estrangeiro, eleito democraticamente pelas estruturas locais, porque isso convém à pequena camarilha que procura, a benefício de interesses pouco claros, aprofundar o poder de Lisboa nas estruturas partidárias da emigração, destruindo tudo o que seja iniciativa cívica local, de forma a «coordenar» de Lisboa todos os movimentos nas comunidades emigradas.
O Sr. Professor, que é um homem de Cultura, colocou-se, provavelmente sem se aperceber disso, do lado dos que defendem para as Comunidades uma política obscurantista de base folclórica (ranchos, sardinha assada e saudade) contra os que pugnam pelo reconhecimento dos direitos de cidadania dos portugueses da diáspora e da sua capacidade organizativa para uma intervenção política adequada à defesa dos seus interesses.
Finou-se há anos o uso da expressão «colónia» para classificar as comunidades portuguesas da diáspora. Era a colónia de Paris, a colónia de S. Paulo, a colónia de Genebra. Finou-se o uso da palavra, como naquele dito das moscas; no resto ficou tudo quase na mesma. Os emigrantes são tratados com uma espécie de indígenas e muitos dos representantes do Estado no exterior continuam a portar-se como governadores coloniais.
O Sr. Manuel de Melo é um cidadão especialmente activo. É o presidente da Federação do Partido Socialista na Suiça e vem sendo eleito para sucessivos mandatos no Conselho das Comunidades Portuguesas.
Foi candidato a deputado nas últimas eleições legislativas pelo Círculo da Europa e, nessa qualidade, tomou a iniciativa de impugnar os resultados eleitorais, quando verificou que se registou uma grosseira fraude na contagem dos votos. Desistiu dessa impugnação quando se constatou que ela adiaria a publicação dos resultados e causaria um grave adiamento da posse do Governo.
Não creio que este facto pudesse ter sido motivo para uma qualquer pressão visando a eliminação do Sr. Manuel de Melo, tanto mais que a fraude em causa é inequívoca e que, denunciada ela, o PS elegeria mais um deputado.
A questão axial que no processo disciplinar se levanta é a de saber se um cidadão que é simultaneamente funcionário consular, dirigente de um partido político e membro do Conselho das Comunidades Portuguesas pode ou não criticar as instituições públicas quando elas agem à margem da legalidade ou não defendem, no seu entendimento, os interesses que lhe estão confiados.
Este funcionário tem classificação de muito bom e os próprios superiores hierárquicos o classificam como exemplar em tudo aquilo que realiza. O drama está em que tem uma vida política activa.
Envolveu-se com outros militantes políticos – do PS e de outros partidos – numa luta para que as autoridades da Suiça não colocassem as crianças portuguesas com maior dificuldade de integração em escolas de handicapés, criticou a postura abstencionista e colaboracionista da controversa cônsul-geral em Genebra, aliás contraditória com a postura adoptada pelo seu antecessor.
Adoptou, noutros momentos, posições muito críticas sobre o funcionamento dos serviços, em matérias que dizem respeito, exclusivamente, à defesa do interesse público.
Qualquer funcionário – como funcionário e como cidadão – deve pautar a sua postura, antes de tudo, pela defesa da legalidade. Ora, a marca mais evidente da postura crítica de Manuel de Melo tem a ver, precisamente, com a defesa da necessidade do cumprimento das leis, desde as simples normas do registo civil, cujo desrespeito põe me causa os direitos e as legítimas expectativas dos cidadãos que recorrem ao serviço público, às normas relativas à emissão de passaportes, em que releva, especialmente nos tempos que correm, o interesse da segurança, que não pode permitir loucuras como a de aceitar pedidos por correio.
Uma personagem como esta é obviamente incómoda, sobretudo quando se trata de um funcionário impoluto, com uma irrepreensível folha de serviços e classificação de «muito bom». E torna-se ainda mais incómodo quando é certo que tem o respaldo de milhares de portugueses que nele confiam e que participam nas actividades que ele promove.
É incómodo para um dirigente desmazelado, que deixa os documentos registrais ao monte, de forma desordenada, sem lhe dar o tratamento adequado, ter alguém que denuncie a situação. Mas torna-se ainda mais incómodo quando ele começa a questionar se determinado funcionário, protegido por um superior hierárquico, apresentou documentação falsa sobre as suas habilitações para aceder ao lugar que tem.
Aí começa o «vale tudo»… como se fosse ilegítimo a um funcionário público perguntar se outro é um cidadão honrado ou um falsificador de documentos a coberto dos mais altos responsáveis.
Neste processo – que custou uma enormidade ao erário público, com desnecessárias deslocações a Genebra, por tempo aliás muito superior ao necessário – tudo parece ter sido feito por medida. Há aspectos que não lhe refiro porque são objecto de investigação criminal, no lugar próprio.
Reporto-lhe apenas três situações que me parecem que não merecem sequer comentários:
- Nunca o defensor do arguido foi notificado da realização de qualquer diligência de prova, para que a ela pudesse assistir;
- A contestação do segundo processo disciplinar foi apresentada tempestivamente (tenho disso o respectivo recibo), não tendo sido integrada nos autos;
- Não foram realizadas quaisquer diligências de prova relativamente à segunda contestação, sendo que a prova produzida relativamente à primeira infirma todas as conclusões extraídas pela instrutora, como se pode ver de uma simples análise do processo.
Tanto a instrutora como o Senhor Inspector-Geral Diplomático e Consular, que tem a ousadia de considerar o relatório final bem elaborado, não podiam deixar de saber que a referida contestação foi entregue, sabendo também que o signatário tem disso o devido recibo.
Não podiam os mesmos funcionários deixar de saber que, com excepção de uma pena de multa, de que não recorreu, o arguido não sofreu qualquer outra sanção disciplinar cuja decisão tenha transitado em julgado. E omitem esse facto determinante para a apreciação de Vª Exª.
Foi-se ao ponto de suspender o arguido – mais de dois anos depois da instauração do processo disciplinar – porque os testemunhos colhidos não eram considerados satisfatórios pela instrutora, do que derivou a conclusão de que ele estaria a intimidar as testemunhas, sem que do facto se registasse qualquer prova. Não se fazia melhor no tempo do Sr. José Estaline.
Nenhum inquérito, ao invés, foi conduzido relativamente às irregularidades denunciadas relativamente ao Consulado Geral de Portugal em Genebra. E deu-se um crédito desmesurado a uma testemunha que, com a consciência da realidade, escreveu aos colegas do consulado geral um postal das Maldivas (que está nos autos) em que afirma: « Tenham coragem e abandonem o navio, não se afundará mais do que está. » O postal em causa esteve algum tempo afixado na repartição…
Estou convicto de que Vª Exª foi enganado. A prova dos nove virá com a resposta ou a não resposta a esta carta.
Eu sei que os interesses organizados no Ministério dos Negócios Estrangeiros são muito fortes. E penso que é por isso que a nossa representação externa prima, salvo raras excepções, por uma péssima qualidade em matéria de serviço público.
Sinto-o todos os dias, porque o meu escritório, que é um escritório pequeno, dá assistência jurídica a centenas de portugueses residentes no estrangeiro e a pequenas empresas que ousaram dar passos na internacionalização.
Ainda há consulados onde lhe respondem que o «Diário da República» está fechado no cofre, se quiser consultar o do dia X.
Na maior parte deles não há ninguém que saiba fazer uma simples escritura de habilitação de herdeiros.
Mas é na área do registo civil e da nacionalidade – área em que trabalhava, no Consulado de Genebra, com excepcional competência o Sr. Manuel de Melo – que se verificam as maiores barbaridades. Ainda recentemente fui confrontado com a transcrição do casamento de um cidadão inexistente com uma cidadã portuguesa. Também há pouco tempo me apareceu no escritório, em Lisboa, uma cidadã residente na Austrália para tratar de um assunto… que só podia ser tratado na Austrália, num consulado local que, segundo ela, lhe deu indicações para vir a Lisboa, porque aí resolveria mais rapidamente a questão.
Por toda essas experiências, bem compreendo, a indignação de Manuel de Melo e a sua preocupação na defesa dos interesses dos cidadãos que nele confiam e que o sufragam. E bem compreendo, também, a postura da Inspecção Diplomática e Consular, apostada na defesa de uma diferente visão do interesse público.
Ainda recentemente a mesma Inspecção tomou conhecimento de que os comensais de um banquete oferecido pelo ICEP aos mais importantes compradores de vinho da Áustria ficaram sem comida pela simples razão de que o prato principal, que era um saboroso vitello tonato tinha sido «desviado», na sua maior quantidade, para a arca frigorífica do Embaixador em Viena. Isto é um furto, ou pelo menos ou intolerável abuso. Mas nada aconteceu, para além de pressões sobre os funcionários para que se calassem.
De que vale ter uma Inspecção assim?
Se eu fosse ao Sr. Ministro acabava com ela imediatamente e sujeitava as repartições externas à inspecção da Inspecção Geral da Administração Pública, com os mesmo rigorosos critérios de legalidade que esta aplica no território nacional.
Há barbaridades que nem lhe passam pela cabeça, tais são as dimensões dos abusos de um lado e das omissões do outro.
Tenho esperanças de que Vª Exª, que é um profundo conhecedor da Administração Pública, terá, para do conhecimento, a coragem de adoptar medidas para enfrentar este estado de coisas, com a maior urgência.
Não o resolverá pelo método tradicional do MNE, que consiste em eliminar os funcionários interessado numa mudança que aproxime a qualidade dos serviços consulares dos padrões do serviço público que se pratica em Portugal.
Temos comunidades espalhadas por todo o Mundo, com gente que soube, em percentual acentuado, ter sucesso na vida.
Essas comunidades têm um valor inestimável no quadro de globalização que marca os nossos dias. Não podem ser tratadas com o despreza de que têm sido alvo.
Os portugueses residentes no estrangeiro não têm hoje representantes no Parlamento, porque os partidos políticos tudo têm feito, para, de forma reiterada evitar candidaturas viáveis oriundas das próprias comunidades. Este fenómeno tem afastado muitos dos nossos compatriotas da vida associativa com maior marca política, nomeadamente da actividade partidária.
A visão que boa parte do seu pessoal tem dos portugueses residentes no estrangeiro é a de que são uns broncos, uns atrasados, uns incultos, esquecendo-se que eles são a imagem da parte mais activa do País que somos, vista há umas dezenas de anos e melhorada com o apport que lhes deram os países de acolhimento. Ainda recentemente ouvi classificar o homem que faz os relógios mais caros do Mundo (o aguedense Carlos Dias, dono da Roger Dubuy) como um saloio, um alarve, um inculto, quando se trata de um homem notável, pela simples razão de ter nascido em Águeda e de ser hoje um dos mais prestigiados, se não o mais prestigiado relojoeiro do Mundo.
Em S. Paulo, onde estou actualmente, o Consulado Geral fechou as portas há vários meses, de forma absolutamente ilegal. Há uns negócios mal esclarecidos relacionados com a mudança, que a meu ver indiciam o que a lei penal qualifica como corrupção. Não me parece que seja lícito aos representantes de Portugal receber subsídios para a mudança dos escritórios de empresas que depois são favorecidas no atendimento. Pensar o contrário é admitir que a SONAE pode financiar a mudança da Repartição de Finanças da Amadora para um prédio junto ao Continente de forma a «facilitar» o seu relacionamento com o fisco.
Temos, nesta cidade de 18 milhões de habitantes, um consulado de porta fechada, onde nada funciona senão para uma minoria, que é «muito minoritária». Ainda num dia deste soube que o Presidente do Banif Primus mandou àquela repartição um funcionário superior para entregar pessoalmente ao cônsul um convite para a inauguração das novas instalações do Banco e que o mesmo não conseguiu passar o portão da entrada, obrigado que foi a entregar o convite ao segurança que vigia o jardim.
Se as portas não estão abertas para o serviço normal, não faz sentido que o estejam para os desgraçados. Por isso, o consulado encontrou um modo engenhoso de afastar das suas portas os infelizes, os que precisam de apoio, os que não tiveram sorte neste País. Contratou com a Provedoria Portuguesa – uma respeitável instituição humanitária da comunidade – a triagem dessa gente, de forma a que a mesma não lhe apareça à porta, quando o que era correcto seria receber esses portugueses nas instalações consulares e aproveitar a capacidade da Provedoria para lhes dar o apoio adequado.
Com isto se esvazia a função social do consulado e se reduz a capacidade de intervenção da Provedoria, a quem deveriam ser dadas as condições para encontrar soluções concretas, não burocráticas, para a solução dos problemas, desde o da fome, ao da saúde, passando pelo do alojamento.
Como no Fahrenheit 19, há aqui uma completa inversão de valores, porque o interesse não é, afinal, o de resolver os problemas concretos das pessoas mas o de – porque são miseráveis – as afastar das instalações consulares.
A meu ver, tudo isto decorre de uma ideia de poder, que se tem na representação externa e que é absolutamente possidónia, balofa, parola. Num consulado, qualquer funcionário tem um poder incrível. E o cônsul é – não há regra sem excepção – uma espécie de governador colonial, que lhe advêm de uma desactualizada ideia representante do Estado central.
Parece-me que é preciso introduzir profundas mudanças nesta matéria, separando claramente o que é função diplomática, atributo dos embaixadores, da função consular, marcadamente administrativa, que tem de reger-se pelas mesmas regras que, em países civilizados como o nosso, regulam o funcionamento dos serviços públicos.
Deveriam ser, a meu ver, carreiras distintas, marcada a última por uma vocação essencialmente administrativa e não política.
Parece-me que o País ganharia se, à semelhança de outros, tivesse um percentual razoável de embaixadores políticos, com um tempo limitado de mandato, que pudessem levar ao Ministério um refrescamento da sociedade civil e acabar com essa ideia de «casta» que todos temos por relação aos diplomatas.
Mas parece que, sobretudo, é indispensável mexer profundamente na organização consular, pensando nas funções que ela deve ter nos tempos de hoje.
Penso que é magnifico o exemplo das Lojas do Cidadão. O ideal seria que cada um dos nossos consulados pudesse ser (para os portugueses e para os estrangeiros) uma Loja do Cidadão, com aquela operacionalidade e aquela eficácia que lhes conhecemos.
Sairia muito mais barato ao Estado e dava do nosso País uma imagem de modernidade que ele não tem no exterior, perante quem tem que recorrer aos serviços consulares.
Ainda há muito pouco tempo fomos confrontados, no nosso escritório de S. Paulo, com o problema de um empresário português de Curitiba, que precisava de passaportes para os seus filhos menores, também portugueses, para viajar para os Estados Unidos passadas duas semanas. Porque não tinham bilhete de identidade, teriam que pedir esse documento e o passaporte. Face ao impossível acesso ao consulado de Portugal, ajudamo-lo a obter dois passaportes brasileiros e vistos no consulado dos Estados Unidos. Os vistos foram obtidos em dois dias, sendo certo que em situação idêntica seriam necessários uns 90 na nossa repartição consular.
Digo há alguns anos que, para além do pessoal auxiliar indispensável, nomeadamente tradutores de qualidade (tão raros) um consulado precisa de ter um notário/conservador, um funcionário da administração fiscal e um funcionário do SEF, com as correcções numéricas justificadas pelas necessidades do serviço.
Uma boa parte dos cônsules poderia ser eliminada, com enormes vantagens, bastando um cônsul por país e adopção de um modelo assente na multiplicação de escritórios consulares, muito leves, modernos e funcionais. As cadeias de responsabilidade deveriam ser estabelecidas, no plano funcional, entre os próprios funcionários e os respectivos serviços (registos e notariado, administração fiscal e SEF).
Esta é a visão de um humilde advogado, com alguma experiência nesta área e com uma casuística que cresce desmesuradamente em razão da ineficácia dos serviços referenciados. Mas é também a visão de uma boa parte dos líderes locais das comunidades que melhor conheço.
Tendo esta visão das coisas e conhecendo tão bem o fosso que separa a qualidade dos serviços consulares da qualidade média dos serviços públicos portugueses, compreenderá o Sr. Professor que lhe manifeste a minha indignação com o que se passou com o processo em referência.
O que Vª Exª fez – acredito que não dolosamente – foi decapitar um cidadão activo por causa das suas opiniões sobre o serviço público em que é empregado, apesar de ele estar a isso obrigado por força do seu estatuto de membro do Conselho das Comunidades Portuguesas. Uma tal prática não é conforme com a tradição da sua família política.
Está a tempo de ler o processo e reparar o dano. Se o não fizer, mudarei a ideia que construí sobre a sua pessoa.
Sendo a questão política, nem sequer valerá a pena pedir a um tribunal a anulação do acto. Ficaremos a saber, se nada for mudado, que o Sr. Professor instaurou a censura no Ministério dos Negócios Estrangeiros e que nada de essencial mudará no seu Ministério.
Convidá-lo-ei, se for o caso, para assistir ao lançamento de um livro que hei-de escrever sobre este assunto e em que revelarei tudo o que até ao momento não tive a coragem de usar nos processos, em obediência à separação de águas que deve haver entre a Política e a Justiça.
Desculpe-me o tempo que lhe ocupei com questões tão desagradáveis para ambos.
Receba os melhores cumprimentos do
Miguel Reis
Professor Diogo Freitas do Amaral
Distinto Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal
Pensei várias vezes antes de lhe endereçar esta mensagem. Só o faço porque mantenho a convicção que o Sr. Professor é um homem sério, que não «embarca» conscientemente em jogadas sujas, sobretudo se tais jogadas puserem em causa o futuro e a vida das pessoas.
Conhecemo-nos há mais de trinta anos, quando eu era jornalista e Vª Exª liderava o CDS.
Eu trabalhava no «Jornal de Notícias», onde escrevia diariamente uma coluna denominada «Momento Político». Já era militante do PS, mas sempre procurei manter uma postura rigorosa na elaboração da informação que produzia.
Acompanhei, por razões de ofício, o nascimento do seu partido e privei, na altura, com alguns dos seus principais dirigentes. Fiz amizades, no tempo em que isso era mal visto, com gente de um quadrante político oposto. Penso que, pela minha postura, granjeei o respeito da generalidade dos seus compagnons de route. E isso porque, na linha do que defendia Mário Soares, considerava (ao tempo minoritariamente) que era importante haver um partido do centro-direita em Portugal, sob pena de nunca conseguirmos chegar às liberdades que se fruíam em quase nos países europeus com democracias estabilizadas.
Sai dos jornais por volta de 1982, por entender que tinha acabado uma fase do processo político e que era preciso um novo modelo de jornalismo. Mas continuei envolvido na Comunicação Social, tendo sido escolhido para dois dos seus órgãos reguladores: o Conselho de Imprensa e a Alta Autoridade para a Comunicação Social.
Dediquei-me integralmente à advocacia e encontrei nesta nova profissão, com muita frequência, motivo de envolvimento em causas cívicas. Por isso não estou rico, mas continuo feliz.
Perdemo-nos de vista, mas tenho acompanhado com atenção a sua vida política. Respeito-o nesse plano e, na minha vida profissional, aprendi a admirá-lo como académico.
Congratulei-me quando, alguns dias antes da posse do Governo, num desses bas-fond de jornalistas que continuo a frequentar, soube que o Sr. Professor iria ser o novo Ministro dos Negócios Estrangeiros.
Estou em S. Paulo, onde vim para assistir à homenagem da comunidade portuguesa e da Casa de Portugal em S. Paulo a dois ilustres Mestres da Língua Portuguesa, no dia 10 de Junho, a Professora Clotilde Iemini Brasil e o Professor Pasquale Cipro Neto.
Estava para lhe escrever a propósito desse evento. Fiquei absolutamente chocado com a desvalorização que o seu Ministério faz destas coisas: toda a gente reparou, a começar pelos brasileiros, que não estava presente nenhum dos representantes do Estado Português nem do Instituto Camões, como aliás já se esperava. Manifestar-lhe-ia a minha indignação e aconselhá-lo-ia a tomar medidas que já tardam.
Eis senão quando me vejo obrigado a mudar de tema, para outro que é bem mais grave e que tem a ver também com o seu Ministério.
Caiu-me hoje no meu correio electrónico a cópia de um despacho aposto por Vª Exª no Processo nº P-218, da Inspecção Diplomática e Consular, em que é arguido o funcionário Manuel Guilherme Andrade Ferreira de Melo, do Consulado Geral de Portugal em Genebra, condenando-o na pena de aposentação compulsiva.
Sou seu advogado e, por isso mesmo, não lhe venho, obviamente pedir nada, tanto mais que, seja em acção para anulação do acto seja em acção de indemnização contra o Estado, são fartos os argumentos da sua literatura que me permitem atacar a decisão.
É pena que o Sr. Professor seja o Ministro e não o catedrático a quem haveríamos de pedir um parecer com que abrilhantaríamos o processo, pois que, estou certo que não há hoje entre os Mestres quem melhor pudesse ajudar-nos a combater a ignomínia que, pelo seu próprio punho, foi cometida.
Mas se não venho pedir nada nem lavrar qualquer protesto, que sentido faz escrever-lhe a falar sobre este assunto?
O Sr. Professor sabe melhor do que eu que o direito, começando por ser, na definição de Wienner, um controlo ético aplicado à linguagem, redunda, com frequência, no plano da aplicação, numa aniquilação que contraria a sua vocação reguladora para se afirmar como um mero mecanismo de exclusão.
Isso é especialmente grave quando estamos no domínio do político, como é o caso. Não me parece bem que, sendo Vª Exª o político respeitável que é, com o histórico que tem, possa ser aproveitado para, sem que fiquem sujas de sangue as mãos de alguém do PS.
Vamos, pois, falar apenas do político, deixando o demais para os órgãos próprios que são os tribunais.
O Sr. Professor foi usado, consciente ou inconscientemente, para decapitar um dos mais respeitados dirigentes do PS no estrangeiro, eleito democraticamente pelas estruturas locais, porque isso convém à pequena camarilha que procura, a benefício de interesses pouco claros, aprofundar o poder de Lisboa nas estruturas partidárias da emigração, destruindo tudo o que seja iniciativa cívica local, de forma a «coordenar» de Lisboa todos os movimentos nas comunidades emigradas.
O Sr. Professor, que é um homem de Cultura, colocou-se, provavelmente sem se aperceber disso, do lado dos que defendem para as Comunidades uma política obscurantista de base folclórica (ranchos, sardinha assada e saudade) contra os que pugnam pelo reconhecimento dos direitos de cidadania dos portugueses da diáspora e da sua capacidade organizativa para uma intervenção política adequada à defesa dos seus interesses.
Finou-se há anos o uso da expressão «colónia» para classificar as comunidades portuguesas da diáspora. Era a colónia de Paris, a colónia de S. Paulo, a colónia de Genebra. Finou-se o uso da palavra, como naquele dito das moscas; no resto ficou tudo quase na mesma. Os emigrantes são tratados com uma espécie de indígenas e muitos dos representantes do Estado no exterior continuam a portar-se como governadores coloniais.
O Sr. Manuel de Melo é um cidadão especialmente activo. É o presidente da Federação do Partido Socialista na Suiça e vem sendo eleito para sucessivos mandatos no Conselho das Comunidades Portuguesas.
Foi candidato a deputado nas últimas eleições legislativas pelo Círculo da Europa e, nessa qualidade, tomou a iniciativa de impugnar os resultados eleitorais, quando verificou que se registou uma grosseira fraude na contagem dos votos. Desistiu dessa impugnação quando se constatou que ela adiaria a publicação dos resultados e causaria um grave adiamento da posse do Governo.
Não creio que este facto pudesse ter sido motivo para uma qualquer pressão visando a eliminação do Sr. Manuel de Melo, tanto mais que a fraude em causa é inequívoca e que, denunciada ela, o PS elegeria mais um deputado.
A questão axial que no processo disciplinar se levanta é a de saber se um cidadão que é simultaneamente funcionário consular, dirigente de um partido político e membro do Conselho das Comunidades Portuguesas pode ou não criticar as instituições públicas quando elas agem à margem da legalidade ou não defendem, no seu entendimento, os interesses que lhe estão confiados.
Este funcionário tem classificação de muito bom e os próprios superiores hierárquicos o classificam como exemplar em tudo aquilo que realiza. O drama está em que tem uma vida política activa.
Envolveu-se com outros militantes políticos – do PS e de outros partidos – numa luta para que as autoridades da Suiça não colocassem as crianças portuguesas com maior dificuldade de integração em escolas de handicapés, criticou a postura abstencionista e colaboracionista da controversa cônsul-geral em Genebra, aliás contraditória com a postura adoptada pelo seu antecessor.
Adoptou, noutros momentos, posições muito críticas sobre o funcionamento dos serviços, em matérias que dizem respeito, exclusivamente, à defesa do interesse público.
Qualquer funcionário – como funcionário e como cidadão – deve pautar a sua postura, antes de tudo, pela defesa da legalidade. Ora, a marca mais evidente da postura crítica de Manuel de Melo tem a ver, precisamente, com a defesa da necessidade do cumprimento das leis, desde as simples normas do registo civil, cujo desrespeito põe me causa os direitos e as legítimas expectativas dos cidadãos que recorrem ao serviço público, às normas relativas à emissão de passaportes, em que releva, especialmente nos tempos que correm, o interesse da segurança, que não pode permitir loucuras como a de aceitar pedidos por correio.
Uma personagem como esta é obviamente incómoda, sobretudo quando se trata de um funcionário impoluto, com uma irrepreensível folha de serviços e classificação de «muito bom». E torna-se ainda mais incómodo quando é certo que tem o respaldo de milhares de portugueses que nele confiam e que participam nas actividades que ele promove.
É incómodo para um dirigente desmazelado, que deixa os documentos registrais ao monte, de forma desordenada, sem lhe dar o tratamento adequado, ter alguém que denuncie a situação. Mas torna-se ainda mais incómodo quando ele começa a questionar se determinado funcionário, protegido por um superior hierárquico, apresentou documentação falsa sobre as suas habilitações para aceder ao lugar que tem.
Aí começa o «vale tudo»… como se fosse ilegítimo a um funcionário público perguntar se outro é um cidadão honrado ou um falsificador de documentos a coberto dos mais altos responsáveis.
Neste processo – que custou uma enormidade ao erário público, com desnecessárias deslocações a Genebra, por tempo aliás muito superior ao necessário – tudo parece ter sido feito por medida. Há aspectos que não lhe refiro porque são objecto de investigação criminal, no lugar próprio.
Reporto-lhe apenas três situações que me parecem que não merecem sequer comentários:
- Nunca o defensor do arguido foi notificado da realização de qualquer diligência de prova, para que a ela pudesse assistir;
- A contestação do segundo processo disciplinar foi apresentada tempestivamente (tenho disso o respectivo recibo), não tendo sido integrada nos autos;
- Não foram realizadas quaisquer diligências de prova relativamente à segunda contestação, sendo que a prova produzida relativamente à primeira infirma todas as conclusões extraídas pela instrutora, como se pode ver de uma simples análise do processo.
Tanto a instrutora como o Senhor Inspector-Geral Diplomático e Consular, que tem a ousadia de considerar o relatório final bem elaborado, não podiam deixar de saber que a referida contestação foi entregue, sabendo também que o signatário tem disso o devido recibo.
Não podiam os mesmos funcionários deixar de saber que, com excepção de uma pena de multa, de que não recorreu, o arguido não sofreu qualquer outra sanção disciplinar cuja decisão tenha transitado em julgado. E omitem esse facto determinante para a apreciação de Vª Exª.
Foi-se ao ponto de suspender o arguido – mais de dois anos depois da instauração do processo disciplinar – porque os testemunhos colhidos não eram considerados satisfatórios pela instrutora, do que derivou a conclusão de que ele estaria a intimidar as testemunhas, sem que do facto se registasse qualquer prova. Não se fazia melhor no tempo do Sr. José Estaline.
Nenhum inquérito, ao invés, foi conduzido relativamente às irregularidades denunciadas relativamente ao Consulado Geral de Portugal em Genebra. E deu-se um crédito desmesurado a uma testemunha que, com a consciência da realidade, escreveu aos colegas do consulado geral um postal das Maldivas (que está nos autos) em que afirma: « Tenham coragem e abandonem o navio, não se afundará mais do que está. » O postal em causa esteve algum tempo afixado na repartição…
Estou convicto de que Vª Exª foi enganado. A prova dos nove virá com a resposta ou a não resposta a esta carta.
Eu sei que os interesses organizados no Ministério dos Negócios Estrangeiros são muito fortes. E penso que é por isso que a nossa representação externa prima, salvo raras excepções, por uma péssima qualidade em matéria de serviço público.
Sinto-o todos os dias, porque o meu escritório, que é um escritório pequeno, dá assistência jurídica a centenas de portugueses residentes no estrangeiro e a pequenas empresas que ousaram dar passos na internacionalização.
Ainda há consulados onde lhe respondem que o «Diário da República» está fechado no cofre, se quiser consultar o do dia X.
Na maior parte deles não há ninguém que saiba fazer uma simples escritura de habilitação de herdeiros.
Mas é na área do registo civil e da nacionalidade – área em que trabalhava, no Consulado de Genebra, com excepcional competência o Sr. Manuel de Melo – que se verificam as maiores barbaridades. Ainda recentemente fui confrontado com a transcrição do casamento de um cidadão inexistente com uma cidadã portuguesa. Também há pouco tempo me apareceu no escritório, em Lisboa, uma cidadã residente na Austrália para tratar de um assunto… que só podia ser tratado na Austrália, num consulado local que, segundo ela, lhe deu indicações para vir a Lisboa, porque aí resolveria mais rapidamente a questão.
Por toda essas experiências, bem compreendo, a indignação de Manuel de Melo e a sua preocupação na defesa dos interesses dos cidadãos que nele confiam e que o sufragam. E bem compreendo, também, a postura da Inspecção Diplomática e Consular, apostada na defesa de uma diferente visão do interesse público.
Ainda recentemente a mesma Inspecção tomou conhecimento de que os comensais de um banquete oferecido pelo ICEP aos mais importantes compradores de vinho da Áustria ficaram sem comida pela simples razão de que o prato principal, que era um saboroso vitello tonato tinha sido «desviado», na sua maior quantidade, para a arca frigorífica do Embaixador em Viena. Isto é um furto, ou pelo menos ou intolerável abuso. Mas nada aconteceu, para além de pressões sobre os funcionários para que se calassem.
De que vale ter uma Inspecção assim?
Se eu fosse ao Sr. Ministro acabava com ela imediatamente e sujeitava as repartições externas à inspecção da Inspecção Geral da Administração Pública, com os mesmo rigorosos critérios de legalidade que esta aplica no território nacional.
Há barbaridades que nem lhe passam pela cabeça, tais são as dimensões dos abusos de um lado e das omissões do outro.
Tenho esperanças de que Vª Exª, que é um profundo conhecedor da Administração Pública, terá, para do conhecimento, a coragem de adoptar medidas para enfrentar este estado de coisas, com a maior urgência.
Não o resolverá pelo método tradicional do MNE, que consiste em eliminar os funcionários interessado numa mudança que aproxime a qualidade dos serviços consulares dos padrões do serviço público que se pratica em Portugal.
Temos comunidades espalhadas por todo o Mundo, com gente que soube, em percentual acentuado, ter sucesso na vida.
Essas comunidades têm um valor inestimável no quadro de globalização que marca os nossos dias. Não podem ser tratadas com o despreza de que têm sido alvo.
Os portugueses residentes no estrangeiro não têm hoje representantes no Parlamento, porque os partidos políticos tudo têm feito, para, de forma reiterada evitar candidaturas viáveis oriundas das próprias comunidades. Este fenómeno tem afastado muitos dos nossos compatriotas da vida associativa com maior marca política, nomeadamente da actividade partidária.
A visão que boa parte do seu pessoal tem dos portugueses residentes no estrangeiro é a de que são uns broncos, uns atrasados, uns incultos, esquecendo-se que eles são a imagem da parte mais activa do País que somos, vista há umas dezenas de anos e melhorada com o apport que lhes deram os países de acolhimento. Ainda recentemente ouvi classificar o homem que faz os relógios mais caros do Mundo (o aguedense Carlos Dias, dono da Roger Dubuy) como um saloio, um alarve, um inculto, quando se trata de um homem notável, pela simples razão de ter nascido em Águeda e de ser hoje um dos mais prestigiados, se não o mais prestigiado relojoeiro do Mundo.
Em S. Paulo, onde estou actualmente, o Consulado Geral fechou as portas há vários meses, de forma absolutamente ilegal. Há uns negócios mal esclarecidos relacionados com a mudança, que a meu ver indiciam o que a lei penal qualifica como corrupção. Não me parece que seja lícito aos representantes de Portugal receber subsídios para a mudança dos escritórios de empresas que depois são favorecidas no atendimento. Pensar o contrário é admitir que a SONAE pode financiar a mudança da Repartição de Finanças da Amadora para um prédio junto ao Continente de forma a «facilitar» o seu relacionamento com o fisco.
Temos, nesta cidade de 18 milhões de habitantes, um consulado de porta fechada, onde nada funciona senão para uma minoria, que é «muito minoritária». Ainda num dia deste soube que o Presidente do Banif Primus mandou àquela repartição um funcionário superior para entregar pessoalmente ao cônsul um convite para a inauguração das novas instalações do Banco e que o mesmo não conseguiu passar o portão da entrada, obrigado que foi a entregar o convite ao segurança que vigia o jardim.
Se as portas não estão abertas para o serviço normal, não faz sentido que o estejam para os desgraçados. Por isso, o consulado encontrou um modo engenhoso de afastar das suas portas os infelizes, os que precisam de apoio, os que não tiveram sorte neste País. Contratou com a Provedoria Portuguesa – uma respeitável instituição humanitária da comunidade – a triagem dessa gente, de forma a que a mesma não lhe apareça à porta, quando o que era correcto seria receber esses portugueses nas instalações consulares e aproveitar a capacidade da Provedoria para lhes dar o apoio adequado.
Com isto se esvazia a função social do consulado e se reduz a capacidade de intervenção da Provedoria, a quem deveriam ser dadas as condições para encontrar soluções concretas, não burocráticas, para a solução dos problemas, desde o da fome, ao da saúde, passando pelo do alojamento.
Como no Fahrenheit 19, há aqui uma completa inversão de valores, porque o interesse não é, afinal, o de resolver os problemas concretos das pessoas mas o de – porque são miseráveis – as afastar das instalações consulares.
A meu ver, tudo isto decorre de uma ideia de poder, que se tem na representação externa e que é absolutamente possidónia, balofa, parola. Num consulado, qualquer funcionário tem um poder incrível. E o cônsul é – não há regra sem excepção – uma espécie de governador colonial, que lhe advêm de uma desactualizada ideia representante do Estado central.
Parece-me que é preciso introduzir profundas mudanças nesta matéria, separando claramente o que é função diplomática, atributo dos embaixadores, da função consular, marcadamente administrativa, que tem de reger-se pelas mesmas regras que, em países civilizados como o nosso, regulam o funcionamento dos serviços públicos.
Deveriam ser, a meu ver, carreiras distintas, marcada a última por uma vocação essencialmente administrativa e não política.
Parece-me que o País ganharia se, à semelhança de outros, tivesse um percentual razoável de embaixadores políticos, com um tempo limitado de mandato, que pudessem levar ao Ministério um refrescamento da sociedade civil e acabar com essa ideia de «casta» que todos temos por relação aos diplomatas.
Mas parece que, sobretudo, é indispensável mexer profundamente na organização consular, pensando nas funções que ela deve ter nos tempos de hoje.
Penso que é magnifico o exemplo das Lojas do Cidadão. O ideal seria que cada um dos nossos consulados pudesse ser (para os portugueses e para os estrangeiros) uma Loja do Cidadão, com aquela operacionalidade e aquela eficácia que lhes conhecemos.
Sairia muito mais barato ao Estado e dava do nosso País uma imagem de modernidade que ele não tem no exterior, perante quem tem que recorrer aos serviços consulares.
Ainda há muito pouco tempo fomos confrontados, no nosso escritório de S. Paulo, com o problema de um empresário português de Curitiba, que precisava de passaportes para os seus filhos menores, também portugueses, para viajar para os Estados Unidos passadas duas semanas. Porque não tinham bilhete de identidade, teriam que pedir esse documento e o passaporte. Face ao impossível acesso ao consulado de Portugal, ajudamo-lo a obter dois passaportes brasileiros e vistos no consulado dos Estados Unidos. Os vistos foram obtidos em dois dias, sendo certo que em situação idêntica seriam necessários uns 90 na nossa repartição consular.
Digo há alguns anos que, para além do pessoal auxiliar indispensável, nomeadamente tradutores de qualidade (tão raros) um consulado precisa de ter um notário/conservador, um funcionário da administração fiscal e um funcionário do SEF, com as correcções numéricas justificadas pelas necessidades do serviço.
Uma boa parte dos cônsules poderia ser eliminada, com enormes vantagens, bastando um cônsul por país e adopção de um modelo assente na multiplicação de escritórios consulares, muito leves, modernos e funcionais. As cadeias de responsabilidade deveriam ser estabelecidas, no plano funcional, entre os próprios funcionários e os respectivos serviços (registos e notariado, administração fiscal e SEF).
Esta é a visão de um humilde advogado, com alguma experiência nesta área e com uma casuística que cresce desmesuradamente em razão da ineficácia dos serviços referenciados. Mas é também a visão de uma boa parte dos líderes locais das comunidades que melhor conheço.
Tendo esta visão das coisas e conhecendo tão bem o fosso que separa a qualidade dos serviços consulares da qualidade média dos serviços públicos portugueses, compreenderá o Sr. Professor que lhe manifeste a minha indignação com o que se passou com o processo em referência.
O que Vª Exª fez – acredito que não dolosamente – foi decapitar um cidadão activo por causa das suas opiniões sobre o serviço público em que é empregado, apesar de ele estar a isso obrigado por força do seu estatuto de membro do Conselho das Comunidades Portuguesas. Uma tal prática não é conforme com a tradição da sua família política.
Está a tempo de ler o processo e reparar o dano. Se o não fizer, mudarei a ideia que construí sobre a sua pessoa.
Sendo a questão política, nem sequer valerá a pena pedir a um tribunal a anulação do acto. Ficaremos a saber, se nada for mudado, que o Sr. Professor instaurou a censura no Ministério dos Negócios Estrangeiros e que nada de essencial mudará no seu Ministério.
Convidá-lo-ei, se for o caso, para assistir ao lançamento de um livro que hei-de escrever sobre este assunto e em que revelarei tudo o que até ao momento não tive a coragem de usar nos processos, em obediência à separação de águas que deve haver entre a Política e a Justiça.
Desculpe-me o tempo que lhe ocupei com questões tão desagradáveis para ambos.
Receba os melhores cumprimentos do
Miguel Reis