quinta-feira, janeiro 13, 2005

A reforma do sistema político


A intervenção de Presidente da República não sendo oportuna, como claramente não é neste tempo pré-eleitoral, teve pelo menos o mérito de lançar um tema para o debate político, num momento em que, não se conhecendo nenhuma alternativa eleitoral, os temas são escassos e difusos.
A sugestão do Presidente Sampaio - de que é necessário mudar o sistema em termos que privilegiem maiorias estáveis - é extremamente perversa e contraditória com as próprias circunstâncias temporais em que foi proferida.
Se Jorge Sampaio não fosse um democrata eu diria que nos tempos mais recentes não houve nenhuma maioria mais estável do que a da União Nacional, que nasceu com esse preciso argumento, contra a "dilaceração" da nação pelos partidos.
O problema não está em qualquer falta de maiorias estáveis. Talvez nunca tenha havido (para além daquela) uma maioria tão estável como a da dupla Santana Lopes/Paulo Portas. E foi o que se viu: se não vivêssemos num sistema semi-presidencial, que faz depender o governo do apoio parlamentar e da confiança presidencial, este governo prolongaria a sua agonia até ao fim da legislatura.
Vimos, de outro lado, que há governos sem maioria que governam melhor do que governos com apoio maioritário, pelo que não é por aí que há-de buscar-se a raiz da estabilidade.
O que está mal é de uma extrema evidência.
O sistema foi pensado e projectado para funcionar com partidos democráticos, activos na organização da intervenção política dos cidadãos. Esses partidos não existem na realidade, o que defrauda o funcionamento do sistema na sua raiz.
Se existissem, o problema teria uma dimensão reduzida, uma vez que os candidatos à representação política seriam naturalmente seleccionados pelo peso das suas ideias, nessa dinâmica relação entre os partidos e a sociedade.
Verdade é que os partidos portugueses se fecharam sobre si mesmos, sobrevivendo não numa relação com a sociedade mas numa relação com a comunicação social e com os diversos grupos de lobby - que constituem hoje o seu espaço comum de convivência - e com o aparelho constituído pelos seus dependentes, que acaba por funcionar como a maior garantia do caciquismo.
É hoje inquestionável a existência de um bloco central de interesses que, passando formalmente à margem da política, é constituído por políticos de todos os quadrantes, a quem a simples justificação de "ganhar a vida" permite tudo, sem nenhum preconceito.
A dimensão dos partidos não depende hoje do número dos seus militantes nem da acção destes na sociedade mas do que os directórios conseguem passar na comunicação de massas.
Estes directórios são escolhidos por um número muito restrito de cidadãos militantes. Mas o mais grave de tudo isso é que mesmo esses militantes, em bom rigor não o são, porque, em bom rigor, não têm qualquer possibilidade de militar.
A militância partidária é um trabalho de grupo. Não pode falar-se de militância partidária em partidos de porta fechada aos próprios militantes e muito menos de partidos de porta fechada à sociedade.
É certo que esta evidência tem obrigado à montagem, por alguns partidos, de operações de imagem destinadas a criar na opinião pública uma ideia de participação social alargada.
Essas operações servem apenas para branquear uma deficiência grave do sistema político, não tocando, porém, na sua essência, que se situa a jusante, no momento da escolha dos candidatos ao exercício de cargos públicos, que essas operações de charme ajudam a promover.
Com o actual sistema político - em que os governos podem ser constituídos, em boa parte, por pessoas absolutamente desconhecidas, sem nenhuma prova de competência e sem qualquer legitimidade sufragada, o parlamento não deveria ter mais do que oitenta deputados, porque deles não precisa, como se poderá concluir de uma análise cuidada do trabalho parlamentar.
A grande maioria dos deputados nada produz, ou tem uma intervenção muito reduzida nos trabalhos parlamentares. Esta realidade facilita uma reforma do sistema, que se torna imperiosa se quisermos evitar a degradação da democracia.
Entendo que os partidos políticos são essenciais ao regime democrático, mas não aceito que possa resumir-se a eles toda a vida democrática. Por isso me parece que, na falta de condições para mudar, por via legislativa a vida dos partidos políticos, é indispensável substituir a actual forma de sufrágio de voto em lista pelo voto uninominal.
Porque me parece que nem tudo é mau no actual sistema de listas e que o método de Hondt tem interessantes virtualidades, se fosse eu o legislafor deixava quase tudo na mesma, com uma pequena diferença: em vez de votar na lista, o cidadão passaria a votar num dos elementos da lista. A distribuição dos mandatos continuaria a fazer-se, como até agora, na base do apuramento dos resultados globais por lista; mas a escolha dos eleitos far-se-ia não pela ordem que tem na lista mas pelo número de votos pessoalmente obtido por cada um dos candidatos.
Acabava de vez este compadrio vergonhoso a que assistimos com a constituição das listas dos diversos partidos marcada não pela lógica democrática mas pela lógica da passagem administrativa.
Tenho a certeza de que alguns cabeças de lista nunca seriam eleitos e de que, ao invés, haveríamos de ganhar políticos esforçados, porque a luta por uma vitória pessoal como a que aponto não resulta se for um trabalho de fim de semana, só resultando se for um trabalho, pelo menos, de todos os fins de semana. Complementarmente, deveria a lei estabelecer a possibilidade de qualquer cidadão se poder candidatar numa base de adesão ao programa apresentado por qualquer dos partidos. Os votos que estes independentes colhessem entrariam no score do partido em causa, mas eles seriam eleitos se obtivessem mais votos individuais que os da lista do próprio partido.
Um dos maiores dramas da nossa democracia está na esclerose que atingiu o sistema político.
Muitos dos actores deram as suas vidas à ao regime. São ex-empregados da classe média que assumiram responsabilidades políticas (traindo muitas vezes as suas origens, como lembra sabiamente o meu amigo Edmundo Pedro) sem terem preparação para tais responsabilidades e que se reproduziram mimeticamente, por obra e graça da única coisa que aprenderam a fazer: intriga, jogos de influência, manobras de bastidor. Coisa para cuja eficácia é preciso um bem precioso que se chama tempo, o que, de certo modo justifica que, para além de uma elite que tem fortuna pessoal, sejam muito poucos os que têm modo de vida próprio a envolver-se na política.
Não me refiro, obviamente aos poetas, para quem o tempo é outro, falecendo os países que os não têm ou onde eles definham.
Refiro-me a toda essa gente que por aí vagueia e que, por falta de formação específica, não pode ansiar outra coisa para além de um assento, onde entra mudo e sai calado, não porque haja censura mas porque o próprio sistema é obrigado a defender-se.
São eles, No fim de contas, os garantes da estabilidade. E já existem em número suficiente o que transforma o apelo do Presidente num apelo patético.